Desidério Gomes Amaro, a voz que marcou a rádio nacional durante longos anos, conta-nos a sua história de vida. Nascido em 1937 em Forno Telheiro, Celorico da Beira, no distrito da Guarda, aos 83 anos de idade dá-nos a conhecer um pouco da sua longa, difícil e ‘riquíssima’ história, desde a sua vinda do Brasil, país que o acolheu em pequeno, até ao sucesso no Quadrante Norte com os relatos de futebol. Gomes Amaro é uma das mais reconhecidas vozes da rádio nacional, que adotou Espinho como sua terra desde 1964.

– Fale-me um bocadinho de si, das suas origens…
Eu e a minha mulher somos da mesma aldeia. A minha mulher e a minha cunhada eram professoras em Espinho. Numa das minhas vindas a Portugal, passar umas férias, conhecemo-nos, casámos e vim para cá. Nessa altura nem sequer pensava em rádio, embora trabalhasse num grande grupo de comunicação social, no Brasil, ligado à TV Record.

Havia quem dizia que era brasileiro!…
Tenho dupla nacionalidade, portuguesa e brasileira, por muito respeito que tenho pelo país que me recebeu. Emigramos para o Brasil. O meu pai tinha a terceira classe e a minha mãe a quarta classe. O meu pai era um trabalhador braçal e a minha mãe era uma costureira de mão-cheia. Lembro-me, que, em criança, acordava a altas horas da noite e via a minha mãe debruçada sobre a costura e o meu pai a entregar pão. Foi uma vida muito difícil. No entanto, o seu esforço foi compensado e, felizmente deram-me tudo.
Terminei o curso de eletrónica e entrei para um grupo de comunicação social que tinha três rádios e uma estação de televisão, Rede Record.

Como aparece a rádio na sua vida?
Confesso que nunca pensei em passar para o lado dos microfones! Sempre estive do outro lado, na parte técnica. Foi então que conheci um locutor de futebol que era de descendência luso-brasileira que tinha um tempo de antena na onda curta da antiga Emissora Nacional (atual RDP) e na Rádio América, em São Paulo, com um programa dedicado à comunidade portuguesa. Falava de resultados do campeonato português e de muitas curiosidades do nosso país.
Numa digressão que o Sporting foi fazer ao Brasil e a RTP estava no início, foi lá o Artur Agostinho. Naquela altura, a conversão de sistemas de vídeo tinha de ser feita e, por isso, a RTP pediu apoio à televisão onde eu trabalhava, pois tinham de enviar os trabalhos para Portugal pelo avião da TAP. Como eu era português, a Record quis que acompanhasse a RTP. Fui num carro de exteriores, com duas câmaras. Propuseram-me que viesse para Portugal trabalhar. Vim no ‘canto das sereias’ e, passados dois meses já não me conheciam. Foi nessa altura que fiquei em Portugal uns tempos, casei e voltei ao Brasil.
Nessa altura, esse locutor português no Brasil convenceu-me a participar nesse programa, dando os resultados do campeonato português e explicar onde ficavam as terras no nosso país. Acabou por me lançar o desafio de vir para Portugal e transmitir os jogos para o Brasil. Nunca tinha feito um relato de um jogo de futebol, pois limitava-me a dar informações. Pedi autorização ao meu chefe na Rede Record e ele não me quis deixar sair. Mesmo assim, decidi partir à aventura. Vim fazer o relato de um FC Porto-Sporting, ao antigo Estádio das Antas.
Nessa altura, os Parodiantes de Lisboa tentaram reunir os clubes e pagar-lhes para terem a exclusividade das transmissões desportivas. Nem a rádio pública pagava e não foram todos os clubes que concordaram e um desses foi o FC Porto. Por isso, transmiti esse jogo para o Brasil.
Na cabina ao meu lado estava o Quadrante Norte. Durante a primeira parte apareceu-me um senhor, com um microfone. Era o Ilídio Inácio. Eu lá disse umas coisas para o Quadrante Norte.
No final desse jogo, o Ilídio Inácio voltou à minha cabina, estivemos a conversar e, no fim, deu-me um cartão seu. Nesse dia regressei a Lisboa. Vivia no mesmo prédio do Eusébio.
Mais tarde, como o locutor do Brasil, que me contratara, se atrasava no pagamento, falei com a minha mulher e decidimos voltar para o Brasil. No entanto, quando estava a arrumar as coisas para partir, deparei com o cartão do Ilídio Inácio. Escrevi meia-dúzia de linhas e enviei-lhe. Estava já na minha aldeia, na Guarda e para minha surpresa ele respondeu-me. Ele dizia que se lembrava do caso mas que não se lembrava da pessoa. Disponibilizou-me bilhetes de comboio e entrada no jogo nas Antas. Vim para fazer cinco minutos, pois quem relatava o jogo era o Luís César, que veio a ser secretário técnico do FC Porto. Acabei por fazer o relato de todo o jogo! No final, o Ilídio Inácio perguntou quanto é que eu queria ganhar para lá ficar a trabalhar. Respondi com um número que, para mim, na altura, era muito bom. Para minha surpresa ele aceitou! Foi assim que começou a minha aventura. Vim morar para Espinho, pois a minha mulher dava aulas aqui e nunca mais saí de cá.

Um dos seus grandes períodos foi no Quadrante Norte. Fala-me dessa experiência.
Naquele tempo não havia rádios locais. O Quadrante Norte era o único que tinha microfones de longo alcance. Hoje todas as rádios utilizam efeitos nas transmissões e sinalizam tempos, etc.. O Quadrante Norte foi pioneiro. Na altura havia quem não gostasse dessas coisas, mas atualmente todos fazem. O Quadrante Norte foi um sucesso bem acima daquilo que eu próprio esperava. Um dia, num jogo nas Antas, tirei os auscultadores e continuava a ouvir a minha voz no estádio inteiro! Isto é algo fantástico! Todos levavam o rádio para o estádio, até para saberem os resultados dos restantes jogos. Foi uma experiência única na minha vida.

O Amaro também abraçou as rádios locais, até no tempo das chamadas rádios pirata. Do que se recorda dessa altura?
No final da minha carreira tinha decidido que não iria fazer mais relatos de jogos. Mas perante a insistência de alguns amigos, não consegui dizer que não. Pediram-me para ‘emprestar o meu nome’ e senti-me bem em poder ajudar.
Foi numa altura em que decidi, também, passar a cuidar da minha família, pois não tinha visto os meus filhos a crescerem. Hoje tenho três netos fantásticos e estou, de pantufas, sentadinho num sofá.

Grande parte do tempo em que fez relatos, ocupou-o com o FC Porto…
Todos os meios de comunicação social têm uma orientação e procuram a maior audiência possível. No Norte jogavam o Boavista, FC Porto, Salgueiros, o Leixões, etc.. Contudo, a maioria dos ouvintes do Quadrante Norte era do FC Porto, pois as rádios de Lisboa só transmitiam de vez em quando! O Quadrante Norte fixou-se nestas equipas daqui, principalmente no FC Porto. Onde jogasse esta equipa, os ouvintes sabiam que iria haver relato desse jogo. Por isso, aquela estação de rádio tinha um elevadíssimo número de ouvintes.

Como foi a sua relação, por exemplo, com Jorge Nuno Pinto da Costa?
Para mim sempre foi uma pessoa espetacular. Se o tratar com gentileza ele responde o que se quiser. É uma pessoa acessível. Mas se se entram de ‘chancas’, é certo que se terá a devida resposta. É um homem com resposta pronta, uma ironia imensa. Para mim foi uma pessoa espetacular, mais de fora do FC Porto do que propriamente dentro do clube. É um grande dirigente desportivo.

Há quem pense que o Amaro era portista!… Vivia, com grande intensidade o jogo?
Quando fazia o relato de um jogo abstraía-me de tudo. Procurava transmitir, apenas, aquilo que se passava no jogo e à minha volta, dentro do estádio. Para mim, no relato, limitava-me a ouvir a minha voz e a dos meus companheiros. O que me interessava era aquilo que se passava dentro do retângulo de jogo. Procurava ser o mais fiel possível àquilo que se passava em campo. Não me importava o clube que jogava. Aquilo que queria era relatar, lance por lance e não tomar parte de outras coisas.
Como o Quadrante Norte fazia 80 % dos jogos do FC Porto, diziam que era portista! Posso viver com isso perfeitamente.
Quero dizer-lhe que o único clube que me mandou um ofício (na altura estava na Rádio Renascença) a agradecer o meu relato e a forma isenta como transmiti o jogo com o Dínamo de Zagreb, foi o Benfica. Nesse jogo tive como companheiro, nos comentários, o Senhor do jornalismo, Carlos Pinhão.

Foi o Amaro que introduziu alguns termos nos relatos desportivos em Portugal!…
É normal! Vivi desde criança no Brasil e ouvia os meus companheiros, pois trabalhava numa empresa de rádios e de televisão. Por isso, era impossível que não tivesse apanhado algumas expressões. Seria ridículo tentar aportuguesar as palavras! Fazia-o de forma natural e não tenho culpa do meu sotaque.

Qual foi a sua experiência mais emotiva no seu trabalho?
Tive muitas experiências emotivas e muitos momentos extraordinários, de graça e de alegria imensa. Mas o ponto mais alto foi no Estádio do Prater, em Viena, na Áustria, quando o FC Porto foi campeão europeu pela primeira vez, com o treinador Artur Jorge. Foi o ponto máximo. Depois disso houve mais alguns momentos, mas aquele foi uma sensação incrível porque, no meu caso, ainda não tinha vivido algo semelhante. Senti a nossa comunidade que estava, não só em Viena, mas nos países circundantes.
Naquele tempo, os emigrantes viviam com grandes dificuldades. Mas naquela noite mágica, um pequenino país chamado Portugal, deu uma grande alegria a todos os portugueses.

Há algum episódio caricato ou interessante que tenha surgido na sua carreira?
Depois desse jogo, em Viena, não imagina o número de autocarros que estavam estacionados nas imediações. O autocarro da comunicação social portuguesa estava estacionado também por ali. Ia com o João Veríssimo e alguém me reconheceu. Acabei por entrar num autocarro cheio de portugueses e tive de beber de todas as garrafas de vinho que tinham. Saí pela porta de trás e tive de me sentar na relva durante meia hora porque já não via ninguém!
Outro episódio aconteceu com o treinador Artur Jorge, na Dinamarca. Num jogo anterior ele tinha feito uma substituição e eu fiz uma observação durante o relato. Quando fez a substituição ele foi tremendamente vaiado. Na Dinamarca, quando estávamos na receção do hotel, o Artur Jorge pediu para falar comigo em particular. Perguntou-me se eu tinha alguma coisa contra ele. Respondi que não. Foi então que ele pediu-me para que quando fizesse uma substituição eu não dizer nada porque de outra forma a sua vida ficaria muito difícil! Pedi-lhe desculpa porque me tinha saído!…
Outra situação aconteceu com o SC Espinho. No ano em que o clube subiu à 1.ª Divisão, o doutor Lito Gomes de Almeida, de quem fui muito amigo, ligou para o Ilídio Inácio para transmitir o jogo, assumindo, ele, as despesas da viagem e a estadia. O treinador era o Caiado. Fui no autocarro do Espinho e ficámos hospedados num hotel em Lisboa. Havia normas para os jogadores, mas para mim não. Por isso, fui jantar fora do hotel e regressei perto da meia-noite.
Quando entrei no hotel e pedi a chave do meu quarto, o porteiro, olhou para a lista e o meu nome estava lá! O porteiro, atrapalhado com a minha hora de chegada, disse-me que o senhor Caiado tinha-lhe dito para não deixar sair ninguém! Para me divertir, respondi-lhe que não havia problema porque era filho do presidente. Ele respondeu-me que, assim, já ficaria mais descansado, pedindo-me para não dizer nada ao Caiado…

Como é que o Amaro vê o jornalismo de hoje e a série de comentadores televisivos que surgem em todos os canais?
No nosso tempo tínhamos de ter uma visão rigorosa. No entanto, nos dias de hoje, a miudagem acha que sabe de tudo! Reconheço, porém, que há muito bons valores no jornalismo. Acho, porém, que as opiniões são dadas com muita antecedência perante a experiência adquirida. As palavras, quando saem, não voltam atrás…
Penso que a juventude de hoje é bem mais atrevida. Mas o futebol de hoje está muito politizado. Antigamente o jogo era dentro de campo e agora não sei bem onde é!

O futebol de hoje é comparável ao de outrora, que o apaixonou nos relatos que fazia?
Antigamente ia-se ao futebol confraternizar com o futebol. Mas hoje, alguns jogadores e clubes são reféns de algum grupo organizado de adeptos. Isto não pode acontecer! O futebol tem de ser jogado, mas tem de ter uma parte lúdica, de extravasar emoções, de sensações. Não é o que se passa hoje. Infelizmente e cada vez mais o futebol é um negócio. Não é um desporto igual ao que gostávamos de ver.

Que amizades e que inimizades lhe trouxe este jornalismo desportivo?
Inimizades? Se as tive, não dei por elas! Tive ‘amizades’, o que é igual a companheirismo. Mas amigos de verdade posso contá-los pelos dedos. É um mundo onde cada qual tenta puxar a ‘brasa à sua sardinha’. Não faz sentido criarem-se inimizades nesta profissão. Conheci muita gente, tive companheiros de viagem… Não guardo mágoas. Guardo boas lembranças, muitas alegrias e algumas tristezas. Também tive algumas deceções que ficarão comigo.

Houve alguém, em especial, que o tivesse marcado?
O Ilídio Inácio era um lutador. Era um homem nascido em Santarém e que veio para o Norte como produtor. Depois, progrediu enquanto a rádio não foi nacionalizada. Foi alguém que me marcou pela positiva. Era otimista. Tinha uma visão muito alargada daquilo que a rádio poderia dar naquela altura. Deixava-me fazer tudo, mas a única coisa que não consegui foi que deixasse uma mulher dar voz aos jogos de futebol. A Cristina Aguiar era alguém que sempre disse ao Ilídio para dar uma oportunidade. Ele nunca quis. Hoje as rádios e as televisões têm mulheres como repórteres.

Considera-se um espinhense?
Considero-me espinhense a 200%. Adotei Espinho como minha terra. Aprendi a gostar desta cidade e destas gentes, do clube, o SC Espinho. Emocionou-me quando fui condecorado com o emblema de prata do clube e com a camisola. Lembro-me do atual presidente do clube, pequenino, junto ao seu pai. Não tenho o prazer de o conhecer enquanto homem. Fiz cá nesta cidade muitas amizades. A cidade traz-me muito boas lembranças. Sempre fiquei na sombra, a observar esta cidade. Nunca me coloquei perante os holofotes. Mas esta terra tem sofrido uma profunda transformação.

Como vê a evolução da cidade de Espinho ao longo de todos estes anos, desde que a adotou como sua?
Está muito diferente. No verão era muito animada. Mas as coisas mudaram, até na topografia da cidade. As obras estão por todo o lado. Mas isto é necessário à evolução da própria cidade. Por isso, serei como S. Tomé: vou esperar para ver. Tenho acompanhado pelo vosso jornal as mudanças que vão acontecendo. Espero que quem esteja à frente de Espinho consiga trazer a esta cidade uma capa de visibilidade maior do que a que já teve.

Do que mais gosta em Espinho e do que menos gosta?
Como qualquer espinhense, gosto da orla marítima. Gosto de passear na esplanada que é um cartão-de-visita de Espinho. Não gosto dos buracos, do lixo, da falta de respeito de algumas pessoas que atiram o lixo para o chão. Acho que todos podemos ajudar a transformar esta cidade numa cidade mais cortês. A cidade cresce e está muito diferente.

O que é feito do SC Espinho?
Boa pergunta! Quem abandonou o SC Espinho e o deixou chegar ao ponto em que está?! Aquilo que está a acontecer ao Espinho já aconteceu a outros clubes. Quem diria? O Espinho?! Nunca pensei poder ver o clube nesta situação. Quem sabe, com um novo estádio, as coisas possam melhorar. Sei que o atual presidente, o Bernardo Gomes de Almeida, está a fazer um grande esforço para manter o Espinho vivo. É uma tarefa dificílima. Por isso, desejo-lhe toda a felicidade nesse empreendimento. Mas ver imagens daquilo que foi o clube e das suas grandes alegrias, numa das quais estou a narrar, é emocionante. Ver o que é hoje faz-me doer o coração. Dizem que depois da tempestade vem a bonança…

O que sente quando passa junto às ruinas do Estádio Comendador Manuel de Oliveira Violas?
Sinto uma imensa tristeza, como qualquer adepto do SC Espinho. Sou do tempo do campo de terra batida! Dos Gonçalves, João Carlos, Ribeirinho, Meireles e de todos os que por ali passaram e que davam o corpo ao manifesto! Depois, o relvado, o campo cheio… e, de repente, tornou-se num mamarracho. Finalmente, vieram as máquinas… Como diz Chico Buarque: “a força da grana que destrói coisas belas”… Destruiu-se o património do SC Espinho, incluindo o pavilhão…

Ao fim de todos estes anos, sente que a sua família foi devidamente compensada pelas suas ausência e pela vida que dedicou ao jornalismo e à rádio?
Não. Tenho uma dívida eterna com a minha família., com a minha mulher e um pedido de desculpas aos meus filhos. Dou Graças a Deus porque sempre tive uma família muito unida. Quando mais precisaram de mim, estive sempre ausente. Só agora, no fim da vida, estou mais em casa. Fico a dever-lhes muita coisa e não os vi a crescer. Só com os relatos não nos dava para sobreviver e, por isso, tinha de trabalhar. Devo-lhes imenso carinho, por isso, tento compensar, agora, com os meus netos.

Qual a mensagem que gostaria de deixar aos espinhenses?
Vamos tentar vencer esse bicho que nos atormenta e que nos põe em casa. Mas gostaria que as pessoas tivessem orgulho nesta cidade e no que ela representa. Tivemos e continuamos a ter gente muito válida em todas as áreas. É necessário que a esperança nunca acabe e que Espinho volte a ter o epíteto que já teve, de rainha da Costa Verde.