Onde é que aprendeste o que é o infinito?

Esta semana conheci a Bárbara, a Fabiana, a Iara, a Luciana, a Rafaela, a Rosa, a Rute, a Paula, a Sílvia, a Soraia e a Vanessa. Conhecia-as, assim, pelo nome. O que é que estas meninas têm de diferente das outras meninas do mundo? Nada. O que têm de especial? Tudo. Como todas as meninas do mundo.
As 11 fazem parte do documentário “Power Up”, lançado pelo Centro Social de Paramos, que nos mostra precisamente isso: como elas são apenas meninas como as outras. O que as diferencia – e porque é que há-de diferenciar, afinal? – é o facto de viverem num bairro social. A realidade que, até aqui, conheciam era a do, como lhe chamam, Complexo Habitacional da Quinta de Paramos. Começa logo mal quando chamamos “complexo” à casa de alguém. Mas a designação ainda é o menos.
Durante um ano e meio, o Centro Social de Paramos levou-as, como tão bem descrevem, por “outras ruas para além das suas”. E aqui um parêntesis ao Centro, que, em todas as situações em que, por motivos pessoais e profissionais, me cruzei com o seu trabalho, me deixou a certeza de que queria assumir o papel de fazer as pessoas sentirem, e mais do que sentirem, perceberem que podem. Podem tudo, como todas as outras pessoas do mundo.
O documentário começa por lhes perguntar o que querem ser quando forem grandes. Aos 11, 12, 13 anos queremos todas o mesmo: ser atrizes, cantoras, dançarinas, modelos. Mas também educadoras de infâncias, fotógrafas, professoras de natação. Assim mesmo, no feminino, porque, como um dos realizadores do documentário dizia na edição passada da Defesa de Espinho, “os caminhos que estão abertos para as meninas e para os meninos, quer queiramos ou não, são completamente diferentes”. Mais ainda num contexto “onde, muitas vezes, ainda persiste aquela cultura de que o homem trabalha e a mulher vai estando em casa a cuidar dos filhos”.
Uma das meninas fala do incentivo da mãe para que fosse modelo, tinha jeito, mas depois ela não a deixou. Não tinha como ir. Era longe. É tudo sempre muito longe do bairro, afinal. Aí estão as diferenças. Não é nos sonhos, não é na música que ouvem, nos ídolos que as inspiram, no gosto por se porem bonitas. A diferença é que, se tivessem um super poder, estas meninas dizem que queriam ser invisíveis.
Durante um ano e meio elas fizeram coisas que só faziam parte dos sonhos: foram a um concerto, fizeram atividades radicais, coisas que as obrigaram a ser as primeiras a confiar nelas, tiraram fotos como as modelos profissionais, aprenderam a cantar, foram ao teatro e viram que os atores famosos são, na verdade, pessoas como elas, cujos sonhos se realizaram.
As meninas da Quinta de Paramos foram meninas como as outras quando subiram ao palco para serem dançarinas. Foram felizes, iguais às meninas “que tiveram a oportunidade de aprender a dançar desde cedo”. Nem tudo foi perfeito, claro que não. Com as lágrimas próprias de uma sensibilidade adolescente, confessam para a câmara que sentiam que as olhavam “de forma diferente, como se não pertencêssemos, como se não fôssemos capazes”.
A culpa é toda nossa. Das palavras que usamos, da discriminação que alimentamos, dos grupos e estereótipos que criamos. O que determina que estas meninas não sejam como as outras? Que não procurem um lugar ou alguém que lhes diga “sim, o mundo todo é teu, se quiseres. E cabe todo no bairro. Não tens que sair dele”. “Elas devem saber que podem, por elas, ir procurar as oportunidades. Que a segurança do bairro vai lá estar sempre. Que a vida que sonham exige esse caminho”, diz tão bem um dos técnicos do Centro Social de Paramos, “que aproveitem essa inspiração para inspirar outras”.
Não há um único momento em que alguma delas diga mal do bairro, que não queria viver ali. Tentam pôr este sentimento em palavras. E são as coisas mais simples: “é o meu estilo”, “posso andar descalça”, “posso ir ao supermercado de pijama” (quem não adora ir ao supermercado de pijama?), “posso berrar”. É uma vida sem pensar, apenas a ser.
Há, inclusive, uma das raparigas, que agora vive no Porto, que não hesita em dizer como gostava de voltar ao bairro. “Eu adorava viver aqui. As pessoas dizem que se fala uns dos outros e que não querem trabalhar. Mas as pessoas [do bairro] também conseguem”, diz ela, falando das conquistas de que todos são capazes, independentemente do lugar onde vivem (…)

Cláudia Brandão
Jornalista

Artigo disponível, na íntegra, na edição de 04 de março de 2021. Assine o jornal que lhe mostra que lhe mostra Espinho por dentro, a partir de 28,5€.