Umbigos pela verdade

É possível que já vá tarde e que já tudo tenha sido dito sobre este tema, mas eu continuo a surpreender-me com a insistência do ser humano. Por isso, vou dar-me ao trabalho. Ainda não me cruzei com nenhum estudo que se tenha debruçado sobre a correlação entre negacionismo e fake news, mas quase que aposto que sei o resultado. Quanto mais negacionista, maior a tendência para acreditar e – pior – espalhar notícias falsas. Ora aqui estão dois termos que nunca pensei ouvir.

Deparei-me com o primeiro – negacionista pela primeira vez por causa da pandemia. E, sinceramente, não sei bem o que seja. É, muito resumidamente, uma pessoa que se nega a acreditar em alguma coisa, independentemente do que for, se vir que a maioria da população acredita? Ou o problema é a fonte ser o “sistema”? A dúvida é genuína, mas exemplos com que me deparo vão tendendo para uma conclusão: um negacionista é uma pessoa que se recusa a seguir toda e qualquer ideia que lhe limite a liberdade, que lhe atinja os quereres e, portanto, o ego, lhe ponha em causa o livre-arbítrio e a tão intocável e imaculada liberdade de expressão.

Eu, além de tudo, acho que ser negacionista deve ser uma canseira. Tentar encontrar teorias da conspiração em tudo, explicações mirabolantes para as imagens que estão mesmo ali à frente dos olhos, e ainda perder tempo a partilhar semelhante nas redes sociais dá mais trabalho do que tentar verificar a veracidade de uma notícia.

No início, quando se começou a falar de um vírus potencialmente letal e com forte capacidade de transmissão, eu também partilhei no Twitter um vídeo de um jornalista a explicar que não havia necessidade para alarmismo. O típico “é só uma gripe”. Era um jornalista, de uma televisão italiana, à partida tinha tudo para ser credível. E depois é o que se sabe dessa “gripezinha” (para nós, não negacionistas). A verdade é que, naquela altura, partilhei sem olhar ao contraditório, sem procurar outras fontes. Erro tremendo.

A minha área é a do jornalismo, da comunicação. Se me perguntarem, talvez esteja mais preparada para falar de questões de ética jornalística, pressão para publicação antes de todos, até liberdade de imprensa do que muitas pessoas. Mas não sou especialista em nada disso. Um jornalista também não é especialista em doenças infectocontagiosas (ou em qualquer área da medicina). O que ele faz é perguntar a quem é – a mais do que uma pessoa, se quiser ser rigoroso – e partilhar essa informação com as pessoas, contextualizando-a sempre. Pergunta: porque é que há quem receba isso e ache que é tudo mentira? Porque viram na internet? Porque lhes dá a volta aos planos para o fim-de-semana?

Aqui entra a questão das fake news, outro conceito que nunca pensei ouvir (sempre aprendi que se é “fake” não é notícia). Portanto, um negacionista acha que um órgão de comunicação social lhe dar imagens de hospitais no limite e pessoas a ser cremadas aos magotes na Índia é “fake”, mas um fórum na internet vir dizer que o Bill Gates anda a pôr chips dentro das pessoas que são vacinadas já é credível? Tenho que admitir que o vosso enredo é muito mais chamativo, isso é, mas… Faz-me lembrar aqueles filmes de terror incrivelmente macabros, ou cheios de teorias da conspiração com desenvolvimentos demasiado intrincados para serem verossímeis, e acontecimentos que nos fazem pensar “só mesmo nos filmes”, até nos lembrarmos que aquele argumento saiu efetivamente da cabeça de alguém, que houve pelo menos uma pessoa no mundo a quem aquela ideia ocorreu. Há quem faça filmes com isso. E há quem traga o argumento para a vida real.

Um negacionista acha que um órgão de comunicação social dar imagens de hospitais no limite e pessoas a ser cremadas aos magotes na Índia é “fake”, mas um fórum na internet vir dizer que o Bill Gates anda a pôr chips dentro das pessoas que são vacinadas já é credível?

Ora o paradoxo não deixa de ser interessante (porque chamar-lhe ridículo pode ferir suscetibilidades e estas pessoas são muito dadas a crer que tudo é um ataque que lhes é dirigido). Um negacionista não acredita nas instituições, na comunicação social, nem sequer nos médicos que se dão ao trabalho de ir à televisão explicar por miúdos porque é que este vírus mata tanto e o que podemos fazer para o travar. Por outro lado, acredita cegamente no que lê em sites que não são escrutinados, em fóruns onde toda a gente diz o que lhe apetece, em mensagens reencaminhadas 2834837 vezes no Whatsapp. É isso? Também ninguém disse que a coerência era qualidade que lhes assistisse.

No fundo, tudo vai dar à ideia de que nos querem controlar, roubar, usar para fins obscuros, lucrar, enfim. Um negacionista não pensa com a cabeça, nem muito menos age com o coração. Dali, vem tudo exclusivamente do próprio umbigo.

Não sei, e gostava muito de saber, como se argumenta com estas pessoas. Os factos, a verdade, os exemplos não lhes dizem nada. Eles sabem a verdade, a eles ninguém os engana, ninguém lhes tira a liberdade, porque eles não são “carneiros” para andar atrás do rebanho. Beliscar o ego dessas pessoas tem o efeito a que vamos assistindo: as festas com dezenas de pessoas, as manifestações “pela verdade”, os jantares que acabam com os clientes presos em esgotos no exterior de restaurantes. Os discursos do “a mim não me enganam” à procura de likes nas redes sociais. O desprezo pelo sacrifício de tantos que – sabem? – também gostávamos de andar mais livres, não fosse isso pôr tudo em causa e, enfim, sei lá, matar pessoas. E deixá-los, a estes negacionistas, a esses donos da verdade e umbiguistas, andar na sua realidade paralela é mais perigoso do que a nossa inércia ou ignorância gostam de acreditar.

No fundo, o trabalho a que me vou dar aqui é este, o da insistência para não se deixarem cair nisso das fake news, e para não serem vocês um “carneiro” negacionista. É fácil, no fundo: leiam mais do que o título. Se uma notícia parecer “bombástica”, desconfiem. Se não encontrarem essa notícia em nenhum órgão de comunicação social, não partilhem. Esperem um tempo antes de começarem a lançar pedras: vejam mais à noite no telejornal, ou leiam o jornal do dia seguinte, quando os jornalistas já tiveram tempo para confirmar as informações. Só precisam de deixar de lado a vontade de gritar “eu é que tenho razão, a mim ninguém me engana, nem me diz o que posso ou não fazer”. A cabeça, antes do próprio umbigo. Pela verdade.