Uma democracia é mais do que eleições

I
A história conta-se de forma rápida. O estado português decidiu injectar perto de 4 mil milhões de euros na TAP. É provável que acabe por ser mais do que isso, já que a TAP
tinha muitos problemas antes da pandemia e agora está a perder mais de 300 milhões
de euros por trimestre. A Ryanair, uma empresa mais eficiente e que já é a principal operadora nos aeroportos do Porto e Faro, viu a ajuda do estado português à TAP como concorrência desleal porque a própria Ryanair, apesar de operar em Portugal não teve nenhumas ajudas extraordinárias do Estado. Apresentou por isso uma queixa ao Tribunal de Justiça Europeu. O tribunal deu parcialmente razão à Ryanair (embora não o suficiente para que os apoios sejam retirados).

Num país normal, o governo corrigiria a sua argumentação e submeteria de novo o caso à Comissão Europeia.

II
Mas não estamos num país normal. Em vez disso, Pedro Nuno Santos chamou o CEO da Ryanair para uma reunião. No final da reunião emitiu um comunicado agressivo fazendo referências ameaçadoras às operações da Ryanair em Portugal. Pedro Nuno Santos lembrou que também a Ryanair recebia subsídios de autoridades públicas em Portugal e acusou a Ryanair de pagar pouco ao seu pessoal de bordo. O CEO da Ryanair decidiu responder à letra. Lembrou Pedro Nuno Santos de que paga o dobro ao pessoal de bordo em relação ao que o governo português paga aos seus enfermeiros e professores com a mesma idade. Relembrou também que os subsídios públicos que recebe, ao contrário daqueles atribuídos à TAP, têm como contrapartida a criação de empregos (não a destruição como acontece actualmente com a TAP) e a realização de voos (a TAP não recebe apoios para trazer passageiros, mas apenas para existir).

Numa bofetada de luva branca a alguém que garante que o desaparecimento da TAP faria desaparecer muitos voos, o CEO da Ryanair também anunciou que se o aeroporto do Montijo fosse aberto, estaria disponível para trazer muito mais turistas para Lisboa. Os argumentos de Pedro Nuno Santos foram destruídos.

III
Outro empresário com negócios em Portugal provavelmente calar-se-ia com medo que os seus negócios fossem prejudicados. Provavelmente era essa a intenção de Pedro Nuno Santos ao fazer o comunicado. Mas teve azar: devido a um misto de indiferença e loucura, o CEO da Ryanair respondeu mesmo e continuou a insistir no tema, dizendo, com razão, que o dinheiro injectado na TAP fará falta ao país noutras áreas. Por coincidência, aquilo que será injectado na TAP custa mais ou menos o mesmo que custaria uma linha de alta velocidade entre Lisboa e Porto. E não será difícil de imaginar outras infraestruturas ou destinos para o dinheiro público mais importantes do que salvar os credores de uma empresa permanentemente deficitária. A questão que fica é: e se fosse outra empresa com outro CEO? Se fosse uma empresa portuguesa suscetível de ver todo o seu negócio destruído por uma nova lei ou o fim de contratos públicos com o estado. Provavelmente ter-se-ia calado e pedido desculpas ao governo português pela ousadia de levar uma decisão sua a tribunal. Teria pedido desculpas por ter usado de um direito de qualquer pessoa ou organização: recorrer aos tribunais quando considera que o estado tomou uma opção ilegal que o prejudica. Ainda não saberemos as consequências que a Ryanair sofrerá nas suas operações em Portugal por ter ousado desafiar o ministro Pedro Nuno Santos, mas a Ryanair tem negócios em muitos países e conseguirá certamente ultrapassar essas consequências. É até muito provável que Portugal beneficie mais com a Ryanair do que a Ryanair com Portugal e isso trave o ímpeto vingador do ministro Pedro Nuno Santos. No entanto, mesmo que esta atitude não funcione para intimidar a Ryanair, serve de aviso a qualquer empresa que no futuro ouse colocar o governo em tribunal. Muitas empresas não terão a independência que a Ryanair tem, nem um CEO irreverente e com o grau certo de loucura para reagir a ameaças deste tipo.

Pedro Nuno Santos pode ter acabado humilhado pelo CEO da Ryanair, mas enviou uma mensagem a todos os outros empresários: se usarem dos seus direitos democráticos contra uma decisão do governo, os vossos interesses empresariais podem ser colocados em risco

IV
Uma democracia a sério não se satisfaz apenas em ter eleições periodicamente. Há outros pontos importantes. Um desses pilares importantes é a possibilidade de cidadãos e empresas recorrerem aos tribunais quando consideram que outros cidadãos, empresas ou mesmo o estado os prejudicou. A possibilidade de colocar o estado em tribunal é particularmente importante, porque o estado é a entidade que tem o monopólio do uso da força e a capacidade de mudar leis que afectam a vida de todos. Existirem tribunais independentes do poder políticos, capazes de julgar de forma livre as medidas tomadas pelos governos é essencial para garantir o escrutínio democrático. A possibilidade de cidadãos e empresas colocarem o estado em tribunal sem que sintam que isso possa ter consequências em áreas que não a do caso colocado em tribunal é essencial para o funcionamento pleno da democracia. Se um governo reage a um caso em tribunal colocado por uma empresa, ameaçando-a em áreas que nada estão relacionadas com o caso, em vez de acatar as decisões do tribunal, entraremos por um caminho muito perigoso para a democracia. Pedro Nuno Santos pode ter acabado humilhado pelo CEO da Ryanair, mas enviou uma mensagem a todos os outros empresários: se usarem dos seus direitos democráticos contra uma decisão do governo, os vossos interesses empresariais podem ser colocados em risco. A democracia não se perde toda de uma vez, perde-se aos bocados, de uma forma gradual, de uma maneira que para muitos quase parecerá natural. Seria bom mantermo-nos atentos

Carlos Guimarães Pinto
Economista

*O autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico