Estado de calamidade na democracia

1 – Ainda somos um Estado de Direito?
Vivemos longos meses em “estado de emergência”, não sei quantas vezes renovado, do qual passamos, sem respirar os ventos das liberdades constitucionais, para o chamado “estado de calamidade”, que, em bom português, parece coisa pior, mas juridicamente não é. A fundamentação para, deste modo, “suspender” a democracia plena, era “salvar vidas” e impedir o colapso dos serviços de saúde.

A fronteira entre o uso e o abuso do poder de cercear a liberdade, os direitos e garantias dos cidadãos assentava na racionalidade das medidas, na adequação dos meios aos fins, em suma, na procura de uma rigorosa proporção, que assegurasse a igualdade de tratamento das pessoas e das situações. Apesar de um sem número de exemplos de desnorte e arbitrariedade da parte da DGS e da ministra da Saúde, os portugueses tudo iam suportando com infinita paciência.

Talvez por melhor conhecer a matéria, e melhor distinguir o essencial e o supérfluo no combate à crise pandémica, foi um médico especialista, Adalberto Campos Fernandes, antigo ministro da Saúde de António Costa, e não um homem de Leis, o que primeiro ouvi a alertar para o desgoverno neste domínio, para a ultrapassagem dos limites de razoabilidade, pondo em cheque o “Estado de Direito”, porque o “Estado de Direito” exige a igualdade de tratamento e a justificação dos normativos e ditames, com uma base científica. Um condicionalismo que as autoridades se mostram incapazes de cumprir. No estado a que chegámos é crucial simplificar medidas que as pessoas compreendam e sair de uma espiral de contradições.

Joana Amaral Dias é outra não-jurista que se mostra chocada com a experiência governativa destes últimos meses, dizendo que nem Salazar teve tanto poder de condicionar as vidas dos portugueses. De facto, para além de nos terem confinado, vigiado, vedado o acesso às igrejas, aos funerais, aos cemitérios, aos cafés, aos recintos desportivos, às areias das praias e à vista do mar (em tempo invernoso!), ou aos bancos dos jardins públicos, tentam, sistematicamente, intimidar quem ouse pôr em dúvida a bondade das suas delirantes decisões – o que a senhora DGS fez até na Assembleia da República, perante os deputados, como se estivesse ainda na antiga Assembleia Nacional… Neste capítulo, nem o primeiro-ministro, insuspeito democrata, se salva, pois não resiste a zurzir qualquer crítico, como se fosse um inimigo da Pátria…anda mal-habituado pela notória ausência de oposição política. Porém, afortunadamente, de repente, foi a gente anónima que se fartou de tanto desacerto.

2 – A revolução mental do 29 de maio:
O povo acordou no dia em que mais de 16 mil ingleses foram autorizados a assistir à final da Champions nas bancadas do Dragão, e 500 portugueses proibidos de entrar no Estádio do Jamor, para uma final de râguebi (depois de idêntica interdição ter vitimado a final da Taça de Portugal de futebol, em Coimbra). Foi a gota de água…

Já acontecera a noite verde e branca, que tumultuou as ruas da capital – prenúncio da viragem, ímpeto de retorno às antigas liberdades. Na esfuziante festa do SCP fora, por sinal, muito mais compacta a multidão, mais numerosos os desacatos e mais violenta a repressão policial (brigas de bêbados são rituais lisboetas de celebrações de campeonatos, ao contrário do Porto, onde a festa é sempre um São João convivial, que dispensa a vigilância das forças da ordem). Lisboa assumiu, porém, contornos de coisa menor, caseira, benevolentemente olhada, com o próprio presidente da Câmara a encorajar a festança rija, pretextando ter perdido um email em que a Polícia se manifestava contra. E, pela primeira vez, se calou a voz da DGS, que optou por sumir de cena e deixar o papel de vilão a um solitário ministro Cabrita. O evento constituiu, em pandemia, num teste sanitário com desmesurada amostragem (digna de figurar no Guiness), e veio comprovar que o número de internamentos hospitalares não disparou, e menos ainda o de mortes por Covid-19, embora provocando um “super contágio” (para usar a expressão do sportinguista Paulo Portas) e levando a juventude a perder o medo e a animar a noite dos bairros populares, em confraternizações fora de horas e de regras, à maneira dos “hooligans” ingleses, sem precisar da adrenalina do futebol. E assim os contágios se multiplicam, imparavelmente. A nível interno, parece não haver consequências de maior – mudam-se os dogmas da DGS, de modo a não confinar a capital… Todavia, não se mudam, com tanta facilidade, os critérios estabelecidos a nível internacional. A catástrofe que se abateu sobre o nosso turismo começou com o governo britânico a retirar-nos da sua “lista verde”, e outros países poderão imitá-los

O Algarve e os emigrantes portugueses do Reino Unido pagam, assim, o preço dos folguedos consentidos em Lisboa! E falta ainda saber se a Champions agravou, ou não, o “panorama Covid” na região do Porto, após o previsível falhanço da “bolha sanitária” que o governo, com tanta ligeireza, prometera.

O que mais chocou os portugueses, e desacreditou a autoridade irracional e despótica a que temos estado sujeitos, foi a discriminação dos portugueses, tratados abaixo de estrangeiros no seu próprio país. Este despertar de consciências, ou sobressalto cívico, foi o que de positivo nos trouxe a aberrante dualidade de critérios, que se sentira, ao longo de todo o ano e de toda a época competitiva, discriminando o desporto ao ar livre (…) se comparado com eventos culturais programados em espaços fechados.

A verdadeira barreira que isolou os ingleses na Ribeira, na Avenida dos Aliados, na cidade inteira, foi a “bolha cívica”, espontaneamente criada pela população do Porto, que não se misturou com eles, nem participou em bebedeiras e desacatos. Em vão, o Expresso, jornal sulista e elitista e, de vez em quando, sensacionalista, fazia nas vésperas do jogo, notícia com foto grande e manchete de primeira página, profetizando “confrontos entre adeptos ingleses e do FC Porto. No interior, dedicava a sua página 5 a uma crónica, cujo título sintetiza bem o conteúdo: “Alerta para confrontos entre ‘casuals’ do FCP e hooligans antissemitas”. Na edição seguinte, o Expresso esqueceu-se de salientar o exemplar comportamento dos portistas, tal como o dos espetadores britânicos presentes na final. Fora do estádio, a história foi outra, semelhante, aliás, à de Albufeira – ou seja, muita cerveja na via pública, nada de máscaras, pequenas escaramuças de bêbados. Quanto ao antissemitismo, manifestações de extrema-direita e outras pragas anunciadas, felizmente, nada!…

3 – Proibir, sem mais, ou permitir, com regras, eis a questão…
O que mais chocou os portugueses, e desacreditou a autoridade irracional e despótica a que temos estado sujeitos, foi a discriminação dos portugueses, tratados abaixo de estrangeiros no seu próprio país. Este despertar de consciências, ou sobressalto cívico, foi o que de positivo nos trouxe a aberrante dualidade de critérios, que se sentira, ao longo de todo o ano e de toda a época competitiva, discriminando o desporto ao ar livre, e, em especial, o futebol (profissional, amador e de formação) se comparado com eventos culturais programados em espaços fechados. A desobediência em massa às regras draconianas em vigor, ao contar com a passividade das autoridades, tanto em Lisboa como no Porto, estimulou resistências e novos comportamentos (que têm de passar pela liberdade de movimentos, regida por normas simples que já interiorizamos – uso de máscara e distância física). E deixou uma lição, (mais uma…) aos governos, no plano nacional ou local: não vão pelo caminho mais cómodo de proibir, proibir, proibir…

Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado e Vereadora da CME