Não é conflito, é ocupação. Porque ainda pesa a palavra Apartheid.

É claro que já estamos todos um bocado fartos e qualquer um de nós enumeraria uma mãos cheia de constrangimentos que estas ruas esburacadas por toda a cidade nos têm trazido. Podemos ficar muito chateados porque todos os dias temos que fazer um trajeto diferente para os locais do costume, não perceber o que está a ser feito, dizer que nos faltam árvores ou apontar com a frequência do costume o óbvio “é ano de eleições…”.

Vamos dizer que estava muito bem como estava, e ainda não somos capazes de reconhecer que, daqui a uns tempos, já nem nos vamos lembrar como estava, porque nos adaptámos mais rápido do que jurávamos. Porque a vida voltará ao normal (até os carros estacionados naquele suposto alargamento de passeios na Rua 23 já voltaram ao normal, vejam bem). Como volta sempre.

Agora vamos imaginar que não podemos passar por esta ou aquela rua apenas porque não temos um cartão de identidade, um passaporte, com a nacionalidade “certa”. Mesmo que ali tenhamos vivido toda a vida. Vamos imaginar que a pessoa com quem vamos nem pensa na hipótese de ser travado à entrada naquela rua porque não faz parte do grupo da nacionalidade “errada”. Façamos o exercício de pensar que, a cada momento em que voltamos a casa, há um novo buraco aberto para passarem tubagens, há novas rochas gigantescas empilhadas a bloquear a estrada, há os vizinhos – com que temos relações tensas – a construir os seus bairros cada vez mais para cima do nosso terreno. Imaginem ter medo de nos queixarmos disto.

Pensemos nos dias em que vamos à feira. Quando olhamos para os lados, também vemos bancas vibrantes e vendedores entusiastas. Imaginem olhar para o céu e terem por cima das cabeças redes de arame com o objetivo de não deixar que vos caia lixo em cima, sabendo como é ineficaz perante a lixívia e a urina que os vizinhos mandam. Por entre a rede conseguem distinguir perfeitamente a arma de um soldado a seguir os vossos passos desde o alto de uma torre. A dada altura do corredor vibrante, nada. Tudo vazio porque, a partir dali, é propriedade do vizinho e os soldados não vos deixam andar mais. Imaginem quão resistentes teriam de ser para abrir a vossa loja todos os dias, mesmo sabendo que ali não passa ninguém porque ela ficou para lá dos limites. Assim é Hebron, que significando, ironicamente, “amigos”, ainda que cada colonato tenha sido erguido em memória de um israelita morto, como dizem as placas que fazem questão de ostentar, “por um árabe”.

Hoje, à luz dos anos, condenamos a ideia do Apartheid vivido na África do Sul. Autocarros para negros e autocarros para brancos é impensável, claro. Evoluímos. Evoluímos? Pelo menos a essa segregação demos um nome, opusemo-nos, não repetimos. Não deixámos que fosse “normal”. Tivemos vergonha. Desta vez também lhe demos um nome: escolhemos chamar “conflito” a uma ocupação cujas proporções ninguém considerou quando abrimos as portas à criação do dito Estado de Israel. Nem vou pela legitimidade dos judeus terem a sua terra porque não tenho caracteres para ir tão atrás na história (que não, não começou porque os quisemos “compensar” pelas atrocidades nazis).

Hoje, à luz dos anos, condenamos a ideia do Apartheid vivido na África do Sul. Autocarros para negros e autocarros para brancos é impensável, claro. Evoluímos. Evoluímos? Pelo menos a essa segregação demos um nome, opusemo-nos, não repetimos. Não deixámos que fosse “normal”. Tivemos vergonha. Desta vez também lhe demos um nome: escolhemos chamar “conflito” a uma ocupação cujas proporções ninguém considerou quando abrimos as portas à criação do dito Estado de Israel.

Ocupação, sim. Com a benção de uns e o assobiar para o lado de outros. Com tantos anos disto, haverá – claro que sim – dedos a apontar aos dois lados no que diz respeito a atitudes. Mas a dimensão da violência tem que entrar na balança. Neste texto também não cabem os ataques do Hamas e os bombardeamentos na Faixa de Gaza. Por aqui, e porque tanto já li sobre a questão, posso falar apenas do que vivi.

E o que vivi nos poucos dias em que estive na Palestina foi um clima constante de tensão. Quase se respirava. Também eu fui parada nos checkpoints, mas a diferença é que, ao ver o meu passaporte, o soldado – do alto dos seus 20 anos – me sorriu, fez referência ao Futebol Clube do Porto e desejou-me boa viagem. O palestiniano que nos guiava estava em silêncio e de cabeça baixa o tempo todo. Tinha 60 e tal anos e, apesar de ser das pessoas que mais vi sorrir naqueles dias, percebi que tinha medo. Que aquilo de nos levar a conhecer a realidade no West Bank era, para ele próprio, um grande risco.

Era um dos irmãos da quinta onde fiz voluntariado. Um lugar rodeado de colonatos israelitas, a crescer como cogumelos todos os dias. Nem sei como lá cheguei, depois de uns quilómetros a pé, de mochila às costas, porque os taxistas não entram na Palestina. Todos os dias, pela manhã, tínhamos os drones a dar os bons dias. Houve noites em que se ouviam gritos, sirenes e helicópteros. Ninguém sabia ser exato no porquê. Depois já nem perguntávamos. Como também não havia palavras para devolver a uma criança que nos diz que os militares entraram e revistaram a sua casa na noite anterior. À procura de quê? Percebi, entretanto, por testemunhos de israelitas que deixaram o exército por não se identificarem com as ações de ocupação e intimidação, que nem eles sabiam. Que nem sempre há uma justificação para atormentar os palestinianos que atribua razão ao “porque sim”.

E nesses dias no West Bank, a partir de um lugar onde a primeira coisa que me contaram foi que dali costumava ser possível ver os rockets, contei cada gota de água da chuva que gastei para tomar banho, acumulada em grandes tanques nos telhados, porque os israelitas não deixavam que ali chegasse água canalizada. Percorri longos metros de terreno vazio onde antes se erguiam as cerca de 300 árvores derrubadas num só dia e vi como ali se reconstrói sempre tudo, todos os dias. Vivi assim 15 dias, não a vida toda.

Eu sei que o paralelismo que aqui faço não tem nada a ver. Até porque é preciso estar lá para perceber que não há comparação possível com a situação que se vive na Palestina. Mesmo que não haja bombas para virem parar às notícias, os dias são todos de medo. De resistência, claro, mas sempre com a certeza de que uma pedra de nada vale contra uma bala, e que esta não precisa propriamente de motivo válido para ser disparada. Em tribunal, não haverá consequências.

É um novo apartheid, uma ocupação e, quando os bombardeamentos param, uma espécie de guerra fria que não permite passos em falso. Desta vez, com a mais sofisticada tecnologia bélica ao serviço e todos nós a branquear esta democracia distópica. Para os palestinianos, ali não há queixar-se, contornar, deixar a memória apagar e voltar ao normal. Aquilo não é normal.