Tóquio – os Jogos do nosso contentamento descontente

1 – A participação portuguesa nos últimos Jogos Olímpicos é incensada pela generalidade dos políticos e dos comentadores desportivos, como “a melhor de sempre”. Dir-se-ia que marcou a transição para um patamar de desenvolvimento qualitativo. Pura ilusão…

Na realidade, continuamos na cauda da Europa, em matéria de investimento nas diversas modalidades desportivas (menos de metade da média europeia), de formação escolar e universitária – só no desporto federado se pode verdadeiramente fazer carreira – de exercício físico em todas as idades. É esta gritante falta de cultura desportiva que, fundamentalmente, determina o medíocre lugar que ocupamos no “ranking” europeu e mundial de alta competição.

A proclamada excecionalidade da recente “performance” é relativa aos nossos próprios resultados olímpicos passados, que oscilaram, modestamente, entre as duas ou três e estas celebradas quatro medalhas de 2021 – limitadas ao atletismo, em modalidades individuais, a evidenciar o mérito de cada atleta (e, quanto muito, também, dos seus clubes que os apoiam), muito mais do que de um projeto ou estratégia dos poderes públicos. Em boa verdade, na Europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a Lituânia, com 2 milhões e 794 mil de habitantes, Chipre com 1.224.216, o Luxemburgo com 643.196 e Malta com apenas 502.633).

Em boa verdade, na europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a LITUÂNIA, CHIPRE, LUXEMBURGO E MALTA)

2 – Muito se realçou, igualmente, o caráter “inclusivo” da delegação portuguesa, com esse adjetivo querendo significar a presença de estrangeiros naturalizados e de cidadãos de origem africana na nossa delegação. Devemos regozijar-nos com o facto haver neste domínio abertura para o reconhecimento da dupla nacionalidades e para a atribuição do passaporte português, ao contrário do que é corrente no futebol, em que tanta polémica causou a chamada de Deco e de Pepe à seleção. Talvez, porém, o mesmo não tivesse ocorrido se representassem clubes de Lisboa, como é o caso dos atuais atletas Pedro Pablo Pichardo, Nelson Évora, Jorge Fonseca ou do inesquecível Francis Obikwelu. Esta dúvida não é levantada contra esses clubes de Lisboa, cuja influência, a ter sido exercida, o foi por uma “boa causa”, que, aliás, louvo por contribuírem para o sucesso do nosso atletismo, como, noutros tempos, o fez o FCP, com o seu trio “de ouro” feminino – Aurora Cunha, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro.

Igualmente me parece de saudar o fenómeno da preponderância dos afro-portugueses nesta modalidade, com três em quatro das nossas medalhas de Tóquio, a exceção sendo a do canoísta Fernando Pimenta, com raízes nortenhas em Ponte de Lima. E só de Pedro Pichardo se pode dizer que foi formado no estrangeiro e se naturalizou já com um brilhantíssimo palmarés. Jorge Fonseca veio de São Tomé para Portugal com 11 anos, e Nelson Évora, nascido em Abijan, de pais cabo-verdianos, também muito cedo aqui se integrou. Patrícia Mamona é portuguesa nata, de ascendência angolana. Única mulher neste histórico quarteto de enormes campeões, ganhou uma medalha de prata que vale mais do que o ouro. Ela é a pura encarnação do espírito olímpico, da vontade de se transcender, a cada novo dia. Teimou, desde menina, em praticar o triplo salto e em atingir o Olimpo numa modalidade para a qual, sendo uma predestinada, lhe faltava, diziam-lhe todos, uma característica física: a altura. Mede apenas 1,66 e, note-se, perdeu o ouro para uma gigante de quase dois metros (mais precisamente 1,92).

O que motiva, num país de mentalidade tão avessa ao fomento da atividade física na escola, desde a infância, os futuros campeões, rapazes e, igualmente, raparigas (feito maior, numa sociedade ainda tão misógina)? O que leva crianças de minorias étnicas, em quase todos os outros setores marginalizadas, a superarem o destino pela glória desportiva? É uma história que se vai fazendo de comparações nas semelhanças e nas diferenças de circunstâncias, e que precisava de ser bem melhor contada e analisada. Talvez, um dia, possam dar origem a museu nacional do desporto…Até lá, cada terra vai homenageando os seus heróis, como Espinho muito bem tem conseguido, guardando a memória de António Leitão.

3 – Tóquio 2021 deixa-nos, pois, por um lado, contentes com os atletas, em concreto, os medalhados, os que só não o foram por menos sorte num momento decisivo, os que trouxeram diplomas olímpicos bem mais numerosos do que os pódios, e também significativos, como indicadores de qualidade e de potencial para 2024 – e, por outro lado, descontentes com a falta de progresso geral, com o imenso desperdício de talentos, os que já se perderam e os que estão por encontrar.

Quando Aurora Cunha iniciou a sua meteórica carreira, com uma primeira grande vitória nacional, o “Mundo Desportivo”, de 9 de junho de 1976, escrevia: “Quantas Auroras em potência haverá neste país?”.

O caso desta fantástica atleta é paradigmático. Aos 14 anos, a oitava de uma família numerosa de 10 filhos, menina franzina e irrequieta, era operária fabril. Um domingo, à saída da Igreja, depois do Terço das 15 horas, alguém se lembrou de animar o fim de tarde com uma corrida popular para rapazes e raparigas, no estádio de Ronfe.

Aurora lá foi, com o sua saia de malha domingueira e sapatos de cabedal, e ganhou, destacadamente, à frente de todos os rapazes, alguns deles equipados a rigor. O Clube Juventude de Ronfe logo ali a convidou para treinar e competir, e, pouco depois, viria o contrato com o FC Porto, o seu clube de coração. E, assim, de súbito, se alargaram os horizontes da menina-fenómeno, que, no meio fundo e fundo, havia de acumular recordes e medalhas de ouro, ser tricampeã mundial e vencedora das mais prestigiadas maratonas. Vale a pena colher, na sua inspiradora autobiografia “Uma vida de paixões” (prefaciada pelos Presidentes Ramalho Eanes e Rebelo de Sousa), os ensinamentos de uma carreira ímpar, que começou tarde e por puro acaso. 45 anos depois, a questão de “O Mundo Desportivo” mantém toda a pertinência. Quantas Auroras estarão por descobrir?