Primeiro eles vieram pelos cabeleireiros, mas eu não fiz nada

Ainda os taliban não tinham entrado em Cabul e as paredes da cidade correram a ser tapadas sempre que tinham rostos de mulheres a fazer publicidade. Correram cabeleireiros, salões de beleza, ginásios, marcas de roupa. Uma conquista – por aqui um dado adquirido – com cerca de duas décadas apagava-se, assim, com tinta branca, em segundos. É aquela história do “primeiro, eles vieram pelos cabeleireiros e eu não fiz nada porque achava isso supérfluo…”. Como supérfluo talvez seja também casamentos forçados, mulheres obrigadas a largar os empregos para ficar em casa, raparigas impedidas de ir à escola, jornalistas perseguidas, o corpo, o cabelo, os olhos tapados para não suscitar o desejo nos homens. Um dos líderes dos taliban disse que as mulheres iriam poder trabalhar, “fazer parte da sociedade” – imagine-se! – mas dentro da sharia, a lei islâmica. O que, na prática, quer dizer: nós decidimos a vossa vida, volta tudo ao que era. Mas até essa miragem já foi desfeita e jornalistas mulheres foram proibidas de entrar nas redações, enquanto professoras e alunas correram a queimar anos de estudo e artigos, já à espera que lhes entrem em casa à força, à procura de provas de heresia.

Quando os radicais não estavam no poder, as afegãs até foram aos Jogos Olímpicos. Agora, as jogadoras da seleção de futebol não saem de casa porque já foram ameaçadas e ainda só se passaram uns dias desde que o grupo conquistou Cabul. Os relatos falam em muitas mulheres escondidas em casa com medo de sair à rua, mas as imagens também nos mostram outras que desafiam o que aí vem – ou já aí está – e saem para protestar. Têm uma coragem que nós não compreendemos porque sempre que queremos sair para protestar, não nos passa pela cabeça levar um balázio ou ser espancados.

Querem trabalhar, estudar, enfim, viver como as pessoas normais, fazer parte e, assim, contribuir. E estavam a consegui-lo e, dessa forma, a tornar a sociedade melhor porque só com homens e mulheres nas escolas, nas universidades, nas empresas, nos lugares de decisão e de poder, no entretenimento, é que podemos achar que a missão está cumprida. Ainda hoje, o Dia da Mulher continua a ser importante, não para celebrar aquelas que têm carreiras maravilhosas e vidas de grandes conquistas, mas por aquelas a quem até sonhar é vedado. Por aquelas que têm menos valor que um homem.

Mas pronto, o que vale é que o Afeganistão é longe, é outro mundo. E, na verdade, eles até apoiam o regresso dos taliban contra o imperialismo norte-americano, portanto…estavam a pedi-las, não é? Porque é que eu aqui hei-de ser solidária e promover a vinda destas mulheres para Portugal, para que tenham uma oportunidade como eu tive? No fundo, quem é que quer saber do Afeganistão (a não ser, claro, as influencers de Instagram que, ao que parece, andam com transtornos de 15 segundos – o tempo de uma story)?

Nós por cá, que vivemos em democracia – sim, vivemos – não olhamos para as mulheres assim. Vemo-las como iguais: os mesmos direitos, as mesmas oportunidades. Tudo certo, não é? Pois digam-me, então, porque é que, em 33 candidatos a um posto de liderança nestas próximas eleições autárquicas, eu tenha contado apenas nove mulheres? Nem chega a um terço. Há algumas nas listas, claro, essa coisa do cumprimento de quotas afinal parece que tem que ser, mas e os lugares de liderança? Três partidos e um movimento apresentam mulheres para a Assembleia Municipal e uns impressionantes zero escolhem-nas como candidatas a próxima presidente da Câmara Municipal. O que me leva a pensar que, na ideia de quem escolhe, elas servem para organizar a “casa”, para encontrar o equilíbrio entre as forças, mas não para assumir o comando do navio.

pORQUE é que, em 33 candidatos a um posto de liderança nestas próximas eleições autárquicas, eu tenha contado apenas nove mulheres? nem chega a um terço.

Vamos lá ser objetivos: a câmara em Espinho alterna apenas entre PS e PSD. Portanto, quando outros partidos apresentam candidatas ao cargo, já sabem que o objetivo não é que elas se tornem presidentes, mas apenas ver se entram e lá fazem algum barulho (barulho, entenda-se, agitar as águas, não deixar que a política na cidade siga sempre o mesmo rumo. Não é barulho de fogo de artifício). E porque são apenas nove nomes, até me dou ao (pouco) trabalho de enumerar as restantes candidatas: duas à Junta de Freguesia de Silvalde, uma à de Espinho, uma à de Anta, e uma única também a Paramos. Nisto da igualdade, parece que a fotografia sai com melhor qualidade para os lados da CDU (apresenta quatro candidatas mulheres em seis corridas em que participa. Claro que nenhuma concorre à Câmara Municipal). Não, eu não me identifico com um cargo político, não tenho perfil, e quero contribuir de muitas outras formas. Não quero ser líder de cargos de índole alguma. Mas gostava de acreditar que só não vejo mulheres como candidatas à Câmara de Espinho porque elas também não querem (e aí tudo bem). Mas duvido. “Elas não aparecem, não se envolvem muito na política” (um dia sentamo-nos e discutimos o conceito de carga mental, pode ser?). No dia em que PS ou PSD acharem que uma mulher pode ser, efetivamente, presidente da Câmara – e a não ser que seja alguém com quem tenha uma intransponível falta de sintonia de ideias – tem o meu voto.

Porque primeiro, eles vieram pelos cabeleireiros, mas eu não fiz nada porque achava isso supérfluo. Depois, vieram pelos lugares de liderança, mas eu não fiz nada porque pessoalmente não os ambicionava. Quando vieram pelos meus sonhos, pelas minhas ambições, pelas minhas escolhas e liberdades, já não havia por que lutar.