Memórias políticas para a nossa História

1 – Não conhecemos ainda qualquer esboço do programa das anunciadas comemorações dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, que ocorrem em 2024. Bem à portuguesa, só sabemos, para já, dois nomes. O de quem preside, simbólica e honorificamente – o General Ramalho Eanes, que há muito devia ser o Marechal Ramalho Eanes, e é absolutamente indiscutível – e o de quem vai “presidir” ao Executivo, um jovem professor da área do PS, cuja notoriedade enquanto comentarista de vários “media” em muito suplanta o seu, para já, modesto currículo universitário. Apesar da sensatez e moderação com que sempre intervém, representa, face à escolha da personalidade do Presidente, o 8 perante o 80.

O perfil de académico é, a meu ver, o ideal para um coordenador da “Comissão Organizadora” das celebrações, se, como me parece fundamental para o seu êxito, se vierem a centrar em aprofundadas investigações interdisciplinares. Para fazer história e para “fazer futuro” – na linguagem de então, para “cumprir Abril”, ou para dar a dimensão da modernidade às “conquistas da revolução”. O que por tal se entende não é inequívoco ou consensual em todos os quadrantes, mas, da equidistância dos cientistas, se espera que os considerem todos.

Os trabalhos vão, suponho, começar em breve e prolongar-se por vários anos, antes e depois da efeméride nuclear. Nada tenho a opor a um tão extenso período de preparação e de continuidade de esforços se eles envolverem abertura às diversas universidades e especialistas, (não se fechando em “lobbies”” ou capelinhas), se servirem a pesquisa académica rigorosa, a recolha de documentação, a reflexão e a divulgação da história, pensando, em particular, nos mais jovens, no diálogo intergeracional.

Eu atrever-me-ei, contudo, a afirmar que, num certo sentido, essa tarefa já teve o seu início num segmento particularmente importante da preservação da memória, com o testemunho direto de muitos dos protagonistas da revolução de 1974 e da edificação da democracia – ou seja, o seu “dia seguinte”, na meia década de setenta e na de oitenta. Falo das autobiografias políticas, que não eram propriamente uma boa tradição nacional, mas que ganharam terreno entre os nossos contemporâneos. Cavaco Silva contribuiu com dois volumes, meticulosamente documentados, e mais os seus “diários” da presidência, na esteira de Jorge Sampaio. Mário Soares deixou-nos uma riquíssima coleção de publicações, tocando várias épocas e domínios, até o literário. Convidativos exemplos! As últimas publicações do género que tive a oportunidade de consultar foram as de Diogo Freitas do Amaral, em 2019, com o volume final de uma trilogia, e as “Memórias” de Francisco Pinto Balsemão.

Para muitos, sobretudo os que que nunca souberam o que é o quotidiano de
gente comum ou dos ativos intervenientes sob a ditadura, é uma incursão num mundo desconhecido, norteado por normas estranhas, absurdas… Para outros tem o encanto de uma saga acompanhada de perto, ou, até, em alguns momentos, partilhada. Ao lado de Freitas do Amaral, no governo em que ele foi Vice-Primeiro Ministro de Sá Carneiro, como sua Secretária de Estado, vivi o melhor ano da minha vida, o de 1980, até ao dia 4 de dezembro. Lembrá-lo, página a página, torna-se, assim, uma espécie de romagem de saudade.

De Balsemão não posso dizer o mesmo. Nunca fui amiga nem prosélita, mas, à distância de décadas, é um exercício estimulante constatar, com mais objetividade, não só divergências de análise sobre casos e pessoas, mas concordâncias e algumas bem relevantes, como a relativa à atual filiação do PSD, a nível europeu – o erro de trocar, em fins de século, a Internacional Liberal e Reformista por um PPE, cada vez mais conservador e menos cristão-democrata – ou a simpatia por um militar “presidenciável”, que se chamava Mário Firmino Miguel.

2 – Embora abrangendo, no decorrer de um dado período, as vicissitudes da vida pública no mesmo espaço, é muito distinta da de Balsemão a narrativa de Diogo Freitas do Amaral – reflexo natural das diferenças de personalidade, de pensamento, de formação académica, de objetivos na profissão e na política, e de realização concreta nestes dois sectores.

Freitas do Amaral conjugou, na perfeição, uma fulgurante carreira universitária, (muito novo ascendendo a Professor Catedrático de Direito), e uma corajosa, determinada, e não menos brilhante trajetória cívica e política, ganhando o seu lugar entre os “pais fundadores” do regime nascido no do 25 de Abril – primeiro presidente do CDS, o “Homem de Estado”, que, segundo Mário Soares, “ajudou a converter a direita portuguesa à democracia”. Escreveu muitas páginas de história, que é não apenas sua, mas do país, e, por isso, de leitura obrigatória.

Enquanto Balsemão nos apresenta a sua “narrativa de vida” de mais de oito décadas, Freitas do Amaral optou por se focar nas “memórias políticas”, editadas ao longo de mais de 20 anos em três volumes – nos anos de 1995, 2008 e 2019. Numa expressão sua e lapidar: “Sonhei coisas grandes e, felizmente, vivi muitas.”

Foi candidato à Presidência da República, numa eleição que ganhou na 1ª volta e perdeu na 2ª, para Mário Soares, por escassos 138.000 votos… Paradigmática foi a forma como analisou os vários fatores determinantes dessa derrota, com uma objetividade de cientista político, e como aceitou, democraticamente, o veredicto popular, não hesitando em afirmar: “O percurso e o currículo de Mário Soares eram nitidamente superiores aos meus”. Quase metade dos portugueses tinham mostrado, nas urnas, pensar o contrário… Recusando contestar o resultado, o candidato vencido apressou-se a felicitar o vencedor. No dia seguinte, recebeu em casa um enorme ramo de flores, com um cartão de “cumprimentos, admiração e respeito do casal Maria Barroso e Mário Soares”. Nas “Memórias”, comenta: “Só o Mário Soares e a Maria de Jesus seriam capazes de fazer uma coisa destas”. E eu acrescentarei: Só Freitas do Amaral seria capaz desta reação – a democracia portuguesa no seu melhor! Na era dos Trump e dos Bolsonaros, motivo, para nós, de renovado orgulho.

Francisco Pinto Balsemão, em mil densas páginas, reúne, nos capítulos que sobre política se debruçam, um manancial de dados, desde os dias em que a revolução apenas se adivinhava, sem hora certa.

Deputado da “ala liberal” na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano,
fundador de um semanário que soube antecipar o tempo da democracia, (o “Expresso”), co-fundador de um partido político, que pesou decisivamente na mudança de regime, o PPD/PSD, Ministro, Primeiro-ministro, deputado europeu por 11 dias. E muitas coisas mais! Retrata muitas figuras da nossa “res publica”, tal como as vê e, ao fazê-lo, retrata-se a si também. Poucos são os que se autobiografam assim, emitindo opiniões, com o à vontade de quem está numa roda de amigos.

Em jeito de recomendação, terminarei confessando que tenho ficado a lê-lo pela noite dentro, refrescando lembranças, algumas já vagas, e confrontado as minhas com as suas interpretações sobre o encadeamento de ocorrências, de conflitos, polémicas, pessoas que os protagonizaram – exercício tão grato quando aquelas vão no mesmo sentido como quando são dissonantes.

Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado e Vereadora da CME