Cinanima, memórias de há 40 anos

Quando o Lúcio Alberto me ligou a lembrar, como de costume, que esta semana era meu encargo escrever a crónica da Defesa de Espinho, nem sequer pensei duas vezes no tema a abordar. Estando nós na semana do Cinanima, teria necessariamente de escrever sobre aquele que é o mais antigo festival de cinema em Portugal, o terceiro certame de animação mais antigo do mundo (que está a assinalar tenazmente a sua 45ª edição) e – mais do que tudo – um festival que faz parte da minha vida e com o qual tenho uma relação afetiva muito especial.

Vi nascer o Cinanima em 1976, ainda miúdo, no salão nobre da Piscina Solário Atlântico, embrião daquela que seria a primeira versão internacional do certame, logo no ano seguinte, no inesquecível Cineteatro S. Pedro. Fui um espetador assíduo das primeiras edições, sempre munido da indispensável lanterninha, que me permitia espreitar o catálogo do festival no decurso das estimulantes sessões competitivas, ali buscando informação complementar nas fichas técnicas e sinopses das curtas-metragens “frame by frame” que chegavam a Espinho vindas de diferentes países do mundo.

Foi em novembro de 1976 – mês que ficaria para sempre associado ao festival –, precisamente meio ano depois de ter surgido a Cooperativa Nascente, cujo dinamismo era comprovado pelas cerca de sete mil pessoas que em apenas seis meses participaram nas atividades do departamento cultural da Nascente: coro, teatro e cineclube.

Ao longo de dez dias, entre 12 e 21 de novembro, espalhando-se por três espaços distintos da cidade (o salão nobre da piscina, mas também o cinema do Casino e o Cineteatro S. Pedro), houve dias dedicados ao cinema animado francês, canadiano (com filmes de McLaren), português – que incluiu uma demonstração de como se faz um filme animado assegurada por Matos Barbosa – e búlgaro (sessão apresentada e comentada por Alves Costa). Foram realizadas sessões de divulgação do cinema animado no Liceu (hoje Escola Dr. Manuel Laranjeira) e na Escola Industrial e Comercial de Espinho (hoje Escola Dr. Manuel Gomes de Almeida). Montou-se uma exposição-feira de banda desenhada com as obras dos mais significativos autores portugueses. E projetaram-se duas longas-metragens: “No país das aventuras” e “O Submarino Amarelo”, a obra emblemática de George Dunning.

Acompanhei o CINANIMA como espetador nas primeiras três edições do festival, até que o meu amigo Eugénio Morais – o Géninho, especial amigo de que tanto gosto – me deixou envolver no apoio à organização em 1980, fazendo coisas simples, mas especialmente estimulantes para um jovem com 17 anos acabados de fazer, como ir a Pedras Rubras buscar as delegações estrangeiras que chegavam de avião ou acompanhar convidados internacionais nas refeições que lhes eram proporcionadas nalguns restaurante da cidade.

Por isso senti um baque, um imenso vazio e uma enorme desilusão quando, depois de consumado o Cinanima 80, percebi que o festival podia acabar ao fim de gloriosas (mas efémeras) quatro edições. Inesperadamente, pelo menos para mim, a comissão organizadora do festival, o núcleo de fundadores do Cinanima, demitiu-se em bloco em fevereiro do ano seguinte – ainda faltavam nove meses para o Cinanima 81 – em rutura com a direção da Cooperativa Nascente, personificada por António Gaio. Em causa estava a autonomia administrativa e financeira, desde sempre garantida aos organizadores do festival – e que agora começava a ser posta em causa porque a cooperativa atravessava momentos difíceis, de verdadeira pré-ruptura financeira, e a pujança orçamental do CINANIMA (que já rondava os quatro mil contos/ano) era obviamente apetecível para os depauperados cofres da Nascente.

Mas ainda havia tempo para que o Cinanima não terminasse precocemente. E havia, sobretudo, a estrutura de retaguarda, que a mera existência da Cooperativa Nascente assegurava. O próprio núcleo fundador do festival sabia disso. Daí ter colocado as cartas na mesa com a devida antecedência, o que permitiu a António Gaio formar rapidamente uma nova equipa em que avultava Hernâni Barrosa (seu velho amigo e parceiro na fundação do Cineclube de Espinho quase trinta anos antes), Manuel Carvalho Baptista (cineasta amador) e alguns ativistas de outras secções da Nascente como era… o meu próprio caso.

Da noite para o dia, vi-me no epicentro da organização do Cinanima, a organizar conferências de imprensa, a dar entrevistas na rádio e na televisão, a falar para os jornais, a preparar “press-releases”, a fazer o jornal do festival, a angariar inscrições nos festivais de Zagreb, Annecy ou Marly-le-Roi (Paris), enfim, a sentir que levava aquele mundo às costas. E levava mesmo, tal como todos os companheiros que faziam parte da organização do CINANIMA, num espírito de voluntariado e dedicação absoluta, sem qualquer retorno que não fosse o imenso prazer de fazer o que fazíamos.

“Da noite para o dia, nos inícios de 1981, vi-me no epicentro da organização do CINANIMA, a sentir que levava aquele mundo às costas. E levava mesmo, tal como todos os companheiros que faziam parte da organização do festival, num espírito de voluntariado e dedicação absoluta, sem qualquer retorno que não fosse o imenso prazer de fazer o que fazíamos”

Entre 1981 e 1986, foram anos incríveis de aprendizagem, de viagens ao estrangeiro, de troca de experiências, de trabalho incansável, de noitadas e de diretas a ultimar as publicações do festival. Das amizades que consolidei nesses anos, destaca-se a relação que estabeleci com António Gaio, figura paternal que sempre respeitei (e admirei), mas que nunca me tratou com paternalismo – bem pelo contrário –, fazendo-me sentir como seu par, apesar da diferença geracional. Foi também no Cinanima que cresceu a minha amizade fraternal com o Mário Augusto. Por isso, deixámos como legado (e agradecimento público) o livro “Memórias de Prata” que fizemos em 2001, assinalando os 25 anos do festival.

Agora os tempos são outros e já não se compadecem com o regime de voluntariado (e de voluntarismo) que caracterizou as primeiras comissões organizadoras do Cinanima. É bom saber que o Festival Internacional de Cinema de Espinho entrou numa nova era ao fim de 45 edições, que agora se cumprem, apresentando-se com um programa renovado e com um diretor artístico de primeira linha, Pedro Serrazina, realizador do multipremiado “Estória do Gato e da Lua”, de 1995, que estreou em competição no festival de Cannes.

Se soubesse deste importante “upgrade” na organização do Cinanima, não tenho dúvidas que o meu saudoso amigo António Gaio seria o primeiro a corrigir a afirmação que deixou como legado: “É importante que apareçam pessoas na organização capazes de garantir a qualidade do Cinanima. Mas não queiram crescer demasiado, lembrem-se sempre desse ensinamento do Alves Costa (espécie de “pai espiritual” do Cinanima). E, sobretudo, não tenham a ilusão de trazer para aí nenhum ‘truta’ para dirigir o festival.”

Luís Costa
Jornalista