O vinho, o Natal e o Ano Novo

Porque estamos no período das festas, e porque o mundo do vinho ocupa um lugar especial na minha vida e carreira profissional, hoje vou dedicar-lhe estas breves linhas da minha crónica na Defesa de Espinho.

1 – Deixem-me começar por falar-vos de um aparente contrassenso, pois chega o Natal e o período festivo de dezembro e o paradoxo repete-se, ano após ano. Um enófilo que se preze não descura os vinhos da ceia natalícia; escolhe a dedo o que vai beber com a família no dia de Natal propriamente dito; e prepara espumantes de eleição – ou mesmo alguns champanhes se a economia doméstica o permitir – para colorir com algum requinte a noite de passagem de ano. E, todavia, a noite de Natal merece os melhores vinhos do ano, mas é a pior noite para bebê-los. Com efeito, a algazarra familiar na mesa natalícia não é propícia à fruição completa dos vinhos que se bebem. E também a passagem de ano em Portugal, celebrada em pleno Inverno, quase sempre com muito frio, é tudo menos indicada para apreciar espumantes ou champanhes na sua conveniente e baixa temperatura de serviço, preferencialmente nos 6 graus centígrados.
Mas pronto, não vale a pena ficarmos angustiados com o paradoxo enófilo do período festivo. Festa é festa, e o que mais conta nesta época do ano é a celebração, mesmo que andemos atormentados pelos tempos de pandemia.

2 – Podemos seguir critérios múltiplos na escolha dos vinhos que nos acompanham neste período do ano tão afetivo, jubiloso e especial. No entanto, sempre me pareceu que o Natal e o Ano Novo são excelentes pretextos para celebrar os grandes vinhos das marcas portuguesas mais emblemáticas: Barca Velha, Mouchão, Pera Manca, os velhos Dão dos anos 70, alguns Bairrada da mesma altura, os notáveis Quinta do Carmo, os insubstituíveis Porto Vintage e Tawny, claro está, e uma vez que a festa se sobrepõe inexoravelmente ao frio da época, um espumante referencial das Caves Transmontanas (Vértice) ou da Murganheira, casa que ergueu meritoriamente os vinhos portugueses com “borbulhas” para um novo patamar de qualidade. Não foram os únicos, seguramente, mas têm-se destacado pela consistência, pelo portfólio e pela qualidade média elevada.

De qualquer modo, e para não sermos acusados de paroquialismo ou falta de espírito europeu, nada impede, por exemplo, que se comece a noite da consoada com um Riesling do Vale do Mosel e que terminemos com um genuíno “vinho de gelo” de idênticas paragens, que são dos mais estimulantes vinhos doces (também designados “vinhos de sobremesa”) que existem à face da Terra. E se conseguirem comprar um Riesling St. Nikolaus estarão a cumprir o espírito natalício na sua plenitude, não apenas pela marca em si – que remete para o “padroeiro” do Pai Natal – mas sobretudo porque o hospital St. Nikolaus, na região de Mosel, é inteiramente financiado pelo produto resultante dos seus 15 hectares de vinha. Querem melhor exemplo da ação social e solidária que pode ser protagonizada pelo mundo do vinho?

Este exemplo dos vinhos St. Nikolaus mostra bem como o vinho não é apenas uma bebida, mas sim um bem cultural com milhares de anos de história que tem múltiplas dimensões – inclusive uma dimensão bíblica, como bem sabemos.

3 – Ora, uma das múltiplas dimensões do vinho é literária e não faltam exemplos da ligação visceral entre o vinho, os livros e a vida de imensos escritores renomados. Um deles é o grande Luís Fernando Veríssimo (filho de Érico Veríssimo, o celebrado autor de “Olhai os Lírios do Campo”), que em tempos confessou a sua dificuldade em transmitir por palavras todas as impressões que o vinho nos suscita.

Embora seja reconhecido mestre no jogo supremo das palavras escritas, o brasileiro Luís Fernando Veríssimo reconhece ser “impossível transformar em palavras as qualidades ou defeitos de um vinho, ou as sensações que ele provoca”. Não será inteiramente assim – posso assegurar-vos da minha própria experiência enquanto crítico de vinhos –, nem Luís Fernando Veríssimo quereria dizê-lo de modo tão literal. Mas é curioso ver como ele reconhece que “já disse mais bobagem sobre vinhos do que sobre qualquer assunto” e diz ser “impossível descrever um cheiro e um gosto”, desafiando-nos a tentar descrever o sabor de uma amora: “Além de amplas e vagas categorias, como “doce”, “amargo”, “ácido”, etc., não existem palavras para interpretar as impressões do paladar. Estamos condenados à imprecisão ou ao perigoso terreno das metáforas. Tudo é literatura”.

“Embora seja reconhecido mestre no jogo supremo das palavras escritas, o brasileiro Luís Fernando Veríssimo reconhece ser “impossível transformar em palavras as qualidades ou defeitos de um vinho, ou as sensações que ele provoca”

Ora aí está: tudo é literatura. É nesse patamar elevado que está o vinho. Porque há um lado poético e romântico no vinho que as outras bebidas não alcançam. Talvez por isso seja tão difícil descrevê-lo em toda a sua plenitude de sensações. E sejam precisas metáforas, analogias e até algumas hipérboles, mesmo correndo-se o risco de exageros ditados por trocadilhos delirantes com a roda dos aromas.

Aliás, o vinho teve fortes e consabidas ligações ao mundo literário desde tempos imemoriais. Victor Hugo, Baudelaire, Pessoa, James Joyce ou Hemingway são disso bons exemplos. Entre vinhos com estilo e literárias figuras de estilo, entre vinhos perfeitos e a busca de palavras perfeitas para os definir, talvez o sempre irónico Luís Fernando Veríssimo tenha mesmo razão – tudo é literatura. Vinhos inspiradores, pelo menos, não faltam. Em Portugal, felizmente, cada vez mais.

Luís Costa
Jornalista