Minha senhora, aqui é que é a guerra de 2022?

Raul Solnado tinha uma adaptação particularmente bem conseguida de uma rábula do espanhol Miguel Gila. Em “A Guerra de 1908”, conta-nos sobre a “sua” ida à guerra, de táxi, depois de ter visto, no jornal, o anúncio para um “soldado que mate depressa”.

Era uma guerra com regras, claro. Só abria às nove da manhã, tinha uma senhora a vender castanhas à porta e um calendário rígido: “eles bombardeavam às segundas, quartas e sextas e a gente bombardeava às terças, quintas e sábados. E lá íamos morrendo”. E imagine-se que até havia leis que terminavam com a guerra, como o facto de lá ir o fiscal e decretar que a guerra tinha que acabar porque “a gente não tinha licença de porte de armas”. O público, em 1961, no Teatro Maria Vitória, ri a cada frase a propósito de uma guerra tão arrumadinha.

Já não se fazem guerras como antigamente. Podemos voltar a estes dias em que as coisas eram mais bem organizadas? Como dizia Solnado numa outra rábula, “vocês deram algum tiro na segunda-feira? É que foi acertar num senhor bexigoso que não é da guerra. Isto não são brincadeiras que se tenham”. Não são. Acertar em civis que fogem não são “brincadeiras” que se tenham. Destruir maternidades, hospitais. Abrir corredores direitinhos para o lado do inimigo. Não são “brincadeiras” que se tenham. E “quantos é que vêm?”, pergunta Solnado, “não sei se temos balas que dê para todos”. Não têm, não têm balas, não têm mísseis, não têm grande coisa com que se defender, nem têm a União Europeia, os Estados Unidos, a NATO. Não estará esta guerra mal organizada?

Ideal, então, era telefonar ao inimigo. “‘Tá lá? É do inimigo? Vocês podiam parar a guerra aí um bocadinho? Tenho aqui um colega com dores de cabeça”, parodiava Raul Solnado. Podiam parar a guerra um bocadinho? A Ucrânia tem homens que pouco ou nada percebem disto na linha da frente, cheios de medo, fartos de uma luta que não quiseram, que não entendem.

E já que foi criada a expressão – ou pleonasmo – “crime de guerra”, ou seja, a determinação do que se pode ou não fazer numa guerra, a ver se, como apela a rábula de Solnado, a coisa se organiza, podemos também organizar um bocadinho melhor a nossa veia solidária? Eu sei que as imagens que nos chegam nos dão vontade de arregaçar as mangas e fazer tudo, doar tudo, fazer chegar tudo. Eu sei porque foi isso – uma imagem, a do pequeno Alan Kurdi na costa -, que, em 2015, me fez organizar, com uns amigos uma mega campanha de doação de bens para entregar nas fronteiras europeias onde chegavam refugiados. Enchemos dois camiões e um contentor com roupa, alimentação e afins. Recebemos milhares de ofertas de ajuda, em doações e em braços mesmo.

Também recebemos inúmeras coisas que não servem a ninguém, todos temos aquele saco de roupa que já não vestimos, encostado, à espera de uma campanha deste ou outro género. Que fácil é desfazermo-nos de roupa e calçado que já não servem.

Mas também há o oposto. Pessoas que vão ao supermercado e compram comida de bebé, massas, leite, enlatados como se não houvesse amanhã. Dois conselhos muito rápidos: primeiro, o que não serve a nós, não serve aos outros. E as necessidades de roupa são muito específicas. Segundo, esse dinheiro gasto no supermercado? Transfiram-no para uma organização que esteja a trabalhar no terreno para onde vão enviar os bens. Eu sei que dar dinheiro tem em nós um menor impacto, não é palpável, mas, acreditem, é o mais necessário para quem está a organizar a ajuda a refugiados.

Organize-se esta ajuda para que não esmoreça com o tempo. Lembremo-nos que a necessidade não é só o imediato, que há vidas a continuar a viver quando o impacto esmorece, quando o nosso impulso deixa de ser ativado pelo mediatismo.

É o que digo a todos os que me perguntavam como podiam ajudar a sério, já que eu, já em 2019, estava de corpo presente na Grécia a receber refugiados, e as pessoas se sentiam longe demais para ajudar. Façam donativos em dinheiro. Há coisas que é preciso pagar para a operação funcionar diariamente e, se pudermos comprar bens lá, é melhor para todos: para a logística e para a economia de quem leva com aquela situação pronta adentro (além do custo do transporte e do muito que se estraga até lá chegar). É o que tenho dito sempre, depois de ter acompanhado os camiões que enviei, depois de estar no terreno e ter percebido a dificuldade de armazenar a enormidade de coisas que lá chegam. Sabem que não são apenas os portugueses a enviar roupa e alimentação, não sabem?

E sabem também que tudo isso também vai ser preciso aqui, e durante bastante tempo? Quando a Rússia deixar a Ucrânia (porque é isso que acreditamos que vai acontecer um dia) os ucranianos que aqui recebermos não vão voltar a correr porque…não haverá casas, ruas, universidades, empresas, comércio, serviços para onde ir a correr.

E isto por cá, bem organizado, tantas doações, empregos, casas, até número de contribuinte, Segurança Social e de utente na hora, plataformas aos montes, vai-se a ver e com jeito ainda dava para afegãos, sírios, somalis, iemenitas e outros tantos. Se calhar até esses cabem nas caravanas que se organizam para ir buscar refugiados para trazer para Portugal. A nossa bondade não deixa de me emocionar. Mas organize-se a força desta ajuda para que chegue a tantos mais. Acima de tudo para que chegue verdadeiramente. Parece que, afinal, mostrámos a nós mesmos que é possível receber estas pessoas.

Organize-se esta ajuda para que não esmoreça com o tempo. Lembremo-nos que a necessidade não é só o imediato, que há vidas a continuar a viver quando o impacto esmorece, quando o nosso impulso deixa de ser ativado pelo mediatismo. Que quando a nossa vontade desmedida, imediata e humanamente caótica se desvanecer, porque é isso que acontece, estas vidas ainda precisarão de ajuda. Para fortalecer uma integração que é feita todos os dias, para oferecer empregos que não sejam para colmatar necessidades de sazonalidade, para pagar casa quando os apoios virem os prazos terminados, para os momentos em que a saúde quebrar, a física e a mental. Se acharem que não estão, neste momento, a fazer suficiente, lembrem-se que não vamos ser precisos apenas “neste momento”.

Organizemo-nos hoje e todos os dias daqui para a frente, que há tanto “para a frente” para enfrentar. Nesta batalha dos ucranianos, que é nossa, como nas de todos os outros que fogem. Vimos como a guerra estalou “de repente” na Europa? Um dia poderá ser a fome, a destruição da economia, as consequências das alterações climáticas, as perseguições por grupos extremistas. Não estamos longe. Liguem ao inimigo para organizarmos isto.

(Ainda assim, tenho que assumir que a palavra que usei até aqui não é a correta. Nem sou eu que o digo, é o dicionário. Se não vejamos: «invasão»; nome feminino; ato ou efeito de invadir; tomada ou ocupação militar de um lugar ou território; entrada hostil ou intrusiva em. Corresponde perfeitamente? Então sejamos rigorosos e não difundamos desinformação.)

Cláudia Brandão
Jornalista