O discurso do ódio, o ódio pelo discurso e o discurso contra o ódio

Tenho tendência a acreditar na eficácia dos discursos, no poder da palavra. E, defeito de formação ou não, maravilho-me com a capacidade de alguns em coser tão bem as palavras umas às outras que fazem delas verdadeiras obras de arte. Ao mesmo tempo que me entristece como outras as usam ao desbarato, sem o mínimo cuidado com a força que têm.

Volto de quando em vez ao discurso de tomada de posse de Augusto Santos Silva na Assembleia da República. Consigo encontrar sempre mais, maravilhar-me com a mestria com que coseu as palavras e, com elas, as mensagens. Tão certeiras ambas. Um grande discurso contra o ódio deve ser assim: inteligente a ponto de deixar sem palavras as pessoas a quem se dirige.

Os mais marcantes discursos são aqueles que começam por nos baralhar, por nos fazer achar que o que está a ser dito não leva a lado nenhum…e terminam na generalidade. Porquê tantas voltas à volta da Língua Portuguesa? Porque “o patriotismo só medra no combate ao nacionalismo”. Cada um enfia a carapuça que lhe serve. E continua: “Basta pensar na incrível força desta Língua de tantas pátrias para entender da forma mais profunda que o bom requisito para ser patriota é não ter medo de abrir fronteiras, de integrar migrantes, de acolher refugiados”. De repente está lá tudo, como uma valente chapada.

Estou totalmente de acordo que “esta nossa Língua não é para vociferar fórmulas vazias (…) soam postiças as frases que atiram pedras em vez de argumentos e que cegam em vez de iluminar”. Mais: “as palavras não precisam de ser gritadas porque a qualidade não se mede em decibéis”. Santos Silva tem depois aquela tirada que devia ser emoldurada e pendurada acima da sua cadeira no Parlamento: “o único discurso sem lugar aqui há de ser o do ódio”. Ele ainda explica, mas nem precisava, ouviu-se com estrondo.

Tanto não terá lugar que, dias mais tarde, o mesmo Santos Silva haveria de calar novamente o ódio com palavras: “não há atribuições coletivas de culpa em Portugal. Continue”. Não é forte? Só podemos aplaudir.

Quando se confirmou que o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy iria falar na Assembleia da República, o PCP opôs-se imediatamente. As palavras escolhidas? Disse a líder parlamentar que “a Assembleia da República não deve ter um papel para contribuir para a confrontação, para o conflito, para a corrida aos armamentos. O seu papel deve ser em defesa da paz”. Depois do discurso do ucraniano, escolheu a palavra “insulto” para falar da referência de Zelenskyy ao 25 de abril. Insulto é, na minha opinião, uma palavra que traz consigo um mundo de péssimos sentidos. Há palavras assim e a sua escolha nunca deve ser leviana. Eu questiono se Paula Santos tem noção do significado das suas palavras. Zelenskyy falar ou não falar aos deputados portugueses, penso, não fará a maior das diferenças, a posição do Governo está tomada, mas…recusar-se a ouvir o homem? Ninguém lhe pede que aplauda, mas não estar presente, isso sim, vale mais do que todas as palavras que se utilizem para justificar. Ou a falta delas, porque Jerónimo de Sousa, há dias, teve uma enorme dificuldade para encontrar palavras para dizer que não havia uma invasão, mas uma guerra, consoante as imagens que recebia. Coisas assim tão “óbvias” deveriam ser mais fáceis de dizer, acho.

A dirigir-se aos deputados portugueses, Zelenskyy optou pelas palavras cruas. Sabe que falar ao Parlamento português não é apenas falar ao Parlamento português, mas mais uma oportunidade de informar o mundo sobre o que está a acontecer na Ucrânia. Decerto não está à espera que seja Portugal a liderar qualquer ajuda, em armamento ou sanções. Fez comparações com as dimensões das cidades do Porto e Lisboa, lembrou como estávamos a dias de celebrar o dia em que acabámos com a ditadura no nosso país (como eles querem evitar que ela se materialize no deles), porque sabe que a proximidade impele à ação, mas optou por ser cru e direto na intervenção, informou sobre os últimos acontecimentos e pediu ações muito concretas, sem floreados, sentimentalismos ou idealismos. Se calhar era destes que estávamos à espera, mas o homem tem um invasor a entrar-lhe país adentro e milhares de pessoas a morrer. Não tem tempo.

Da minha admiração pela força das palavras, guardo o que ecoou deste lado (e gostaria que ecoasse mais longe): “Liberdade, direitos humanos, Estado de Direito, igualdade para todos os homens e mulheres, e a oportunidade de viver livremente e sem nenhuma ditadura para que todos tenham sempre tempo para a felicidade e a saudade”. Leiam novamente, com as imagens que chegam a toda a hora da Ucrânia: “tempo para a felicidade e a saudade”. Não são palavras vãs.

Como não são as palavras “dever moral e político de ajudar a Ucrânia”, escolhidas para a reposta de Santos Silva. Como gostava que não fosse vã a ideia de que “a chave da nossa política externa é o amor pela liberdade” e a promessa (as promessas ficam ótimas em palavras) de que Zelenskyy “conta com a nossa defesa intransigente [atenção ao poder desta palavra, estaremos aqui para comprovar] das leis que regulam as relações internacionais e o direito à independência e soberania nacional”. Agora isso de que “estamos sem hesitações nem ambiguidade pela Ucrânia” e de que existe uma “unidade nacional em torno do apoio” ao país… Bem, grandes discursos se fizeram com base em ironia. Comunicar para dentro quando se fala para fora é uma arte. Para escolher palavras, e a sua força, fiquemos com estas: “Não somos ingénuos. Para ganhar, precisamos de ganhar a paz, fazer frente à agressão e de forçar o agressor a parar (…) À luta pela liberdade, Portugal nunca falhou, não falta e não faltará”. Promessas de palavras bonitas? Eu prefiro ver-lhes a força da vinculação.

Que os discursos mais importantes da História sejam lidos repetidas vezes, para percebermos se a força e o sentido das suas palavras se manteve inabalável ou se o tempo os dissolveu para lá do momento. As palavras raramente são apenas palavras.

CITAÇÃO

A dirigir-se aos deputados portugueses, Zelensky optou pelas palavras cruas. Sabe que falar ao Parlamento português não é apenas falar ao Parlamento português, mas mais uma oportunidade de informar o mundo sobre o que está a acontecer na Ucrânia.

Cláudia Brandão

Jornalista