Ainda a guerra…

1 – Em artigo de opinião publicado na edição número 4686, de 24 de fevereiro, escrevi não acreditar na invasão da Rússia a menos que persistissem as intenções de adesão da Ucrânia à NATO. O texto foi enviado para a redacção no dia 23 e, no dia 24, constatei que me enganei: Putin, num acto ilegal e inqualificável, invadiu a Ucrânia. Há quem argumente que se antecipou a uma acção militar, de larga escala, da Ucrânia contra as denominadas repúblicas de Donestsk e Lugansk; ainda que assim fosse, nada legitimava a invasão.

Condeno, por isso, a invasão da Ucrânia por Putin que toma a decisão de agredir um país sem ter em conta as consequências inevitáveis da destruição e perda de vidas humanas e da possibilidade de eclosão de uma guerra nuclear no centro da Europa e que pode pôr em causa a paz e segurança mundiais.

2 – Escrevi ainda no mesmo texto que, nesta questão, não há inocentes mas haverá culpados. O culpado é já conhecido mas EUA, UE e NATO não são inocentes. Em 2014, promoveram e apoiaram um golpe de estado que destituiu do poder o presidente ucraniano democraticamente eleito para aí colocar um regime nacionalista que, inclusivamente, recebeu no seu seio forças nacionalistas, xenófobas e nazis. Como consequência, cidadãos pró-russos foram perseguidos e massacrados, acantonando-se no Donbass, nas regiões separatistas de Donetsk e Lugansk onde, desde então, têm sido vítimas de constantes ataques do exército ucraniano que provocaram, desde então, cerca de 15 000 mortos.

A NATO, incumprindo o compromisso moral assumido aquando do derrube do muro de Berlim, tem, paulatinamente, vindo a expandir-se para leste “cercando” a Rússia que se considera ameaçada na sua segurança. Aliás, a sua preocupação manifestou-a já em 2008 quando foi assinado um memorando que previa a adesão da Ucrânia à NATO.

3 – A “linha vermelha” apontada pela Rússia sempre foi a questão da adesão da Ucrânia à NATO e a predisposição desta para a aceitar (até o Papa Francisco a referiu). Consumada a invasão, Zelensky percebeu que a “reivindicação” russa fazia sentido e, depois de algumas hesitações e centenas de mortes, comunicou a possibilidade de desistência do pedido de adesão e a assunção do estatuto de neutralidade da Ucrânia, posição que, entretanto, já abandonou. Porque não o fez antes da invasão? Porque persistiu nessa intenção? Não teria poupado aos seus concidadãos sofrimento, devastação e morte?

4 – As imagens da guerra, sobretudo de mulheres e crianças mortas ou em fuga, não podem deixar de nos horrorizar. São imagens que bulem com os nossos mais íntimos e recônditos sentimentos, que nos comovem e que nos indignam. São, por isso, compreensíveis e dignas de aplauso as manifestações de solidariedade e a ajuda humanitária que, sobretudo na Europa, se foram sucedendo.

Contrastando com posições anteriormente assumidas, a Europa – e bem – abriu as portas aos milhares de refugiados de guerra ucranianos; países europeus, que antes fechavam as fronteiras e ameaçavam erguer muros contra os refugiados, abrem-nas agora. Lamentavelmente, há que reconhecer, a Europa e o Ocidente praticam uma política selectiva com dois pesos e duas medidas. Há refugiados bons e refugiados maus; refugiados brancos, negros, mestiços e amarelos. Que posição tomou a Europa quanto aos refugiados iraquianos, sírios, somalis, sudaneses, da África sub sahariana e tantos outros que fogem da guerra, do sofrimento e da fome e que encontram a morte no Mediterrâneo? Paga milhões de dólares à Turquia para os manter em campos de refugiados, afastados das fronteiras europeias…

5 – Questiona-se a razão por que os EUA e o seu braço armado, a NATO, não intervieram no conflito/invasão da Ucrânia. A explicação oficial é a de que a Ucrânia não é um país da NATO, facto que inviabilizava a sua intervenção. A justificação não convence. Foi, afortunadamente, o receio de despoletar a III guerra mundial que levou os EUA, a UE e a NATO a não intervir militarmente na guerra da Ucrânia (ainda que continuem a fornecer-lhe equipamento militar). Os EUA invadiram o Iraque em 2003 provocando a morte a cerca de 100.000 pessoas; a NATO bombardeou os Sérvios em 1999 (Sbrenica) provocando cerca de 150.000 mortos. Ao abrigo de que mandato internacional ou aliança o fizeram?

6 – Como medida retaliatória à invasão, o mundo optou pela aplicação de sanções económicas à Rússia. Visa-se, assim, atingir a sua economia, limitando-lhe a capacidade de alimentar a guerra. Sucede que as sanções fizeram ricochete no Kremlin e os estilhaços atingem os sancionadores, sobretudo a Europa que se vê confrontada com escassez de produtos agroalimentares e fertilizantes, com uma inflação apreciável e com a necessidade do petróleo, gás e carvão russos. E, neste particular, reside a grande contradição: o coração da economia russa, a venda de petróleo e gás que rende a astronómica quantia de mil milhões de euros por dia, não foi afectada porque a Europa, principalmente a Alemanha, depende, em termos energéticos, do gás e petróleo russos. Ou seja: a Europa “contribui” com mil milhões de euros por dia para o esforço de guerra russo! Por outro lado, do lado de lá do Atlântico, Biden esfrega as mãos de satisfação por a dependência energética da Europa ter mudado de meridiano… e sem um único tiro!

7 – Não tenho, do mundo, uma visão maniqueísta que o divide em bons e maus. E a histeria ocidental (não só a belicista) sobre a guerra da Ucrânia é exemplo disso mesmo, do mais básico e elementar pensamento único.  São muitos os exemplos dessa esquizofrenia paranóica que, com o incentivo do circo mediático e a exploração da compaixão das pessoas, invade as manchetes dos jornais e os noticiários. A par e a pretexto das sanções económicas, empresas encerram a sua actividade na Rússia; desportistas são proibidos de participar nas competições; músicos, artistas, escritores, cientistas, são proscritos; órgãos de comunicação social russos são silenciados. Intra muros e pelo ridículo das situações, não resisto a narrar as seguintes: um Pivô de um canal de televisão generalista, entusiasmado com o anúncio da retirada das tropas russas da região de Kiev, perguntava a um major general se a Rússia era um tigre de papel;  com a excitação própria de uma criança a quem prometeram uma visita ao Portugal dos pequeninos respondeu: claro que é, é um tigre de papel. Então a Rússia que, para além do seu armamento convencional, dispõe de mais de 6.000 ogivas nucleares é um tigre de papel? E ainda esta: o cardápio de um conhecido restaurante de Espinho foi alterado, dele constando agora “filetes de pescada com salada ucraniana”. A histeria não pára de nos surpreender…

8 – Quem não seguir, acéfala e obedientemente, a narrativa oficial sobre os acontecimentos na Ucrânia é pró-russo, putinista e…..proscrito!

Felizmente existe no país, e também em Espinho, massa crítica que recusa a unilateralidade, que pensa pela sua cabeça e são cada vez mais aqueles que observam os factos e deles retiram as causas para antecipar as consequências. E é este também o escopo deste escrito. Não se pretende justificar ou sequer branquear a invasão russa que merece total e incondicional condenação; não se pretende passar uma esponja sobre os crimes de guerra que devem ser investigados e os seus autores punidos. Pretende-se apresentar, com isenção e objectividade, factos que possam contribuir para encontrar soluções que ponham termo à guerra. Se o Ocidente (EUA, EU e NATO) se empenhasse tanto na procura da paz como se tem empenhado (veja-se a recente reunião na base americana de Ramstein, Alemanha) no fomento da guerra, talvez o fim dela se perfilasse já no horizonte…

Rui Abrantes

Advogado