Rogério Ramos, nascido há 67 anos, em Espinho, percecionou muito cedo que a medicina lhe estava reservada. “Desde miúdo que sabia que ia ser médico. O meu pai e outros familiares também eram. Tinha uma alcunha quando era miúdo: chamavam-me por Doutor”. Há um ano e tal que se reformou do serviço público, onde exercia a coordenação da Unidade de Saúde Familiar de Silvalde.


A pergunta é trivial, mas se não fosse médico o que é seria?
Simplesmente quis ser médico, desde a escola primária. Perguntavam-me o que é que queria ser quando fosse grande e a resposta era imediata. No rés do chão da casa dos meus pais havia uma companhia de seguros que tinha enfermeiro permanente para tratamento de acidentados de trabalho. Isso terá influenciado a minha opção profissional? Não sei. O meu pai era médico, mas não terá sido por isso que optei pela mesma profissão.

Nasceu perto do hospital…
Não sei por que carga d’água, mas nasci em casa. Vivia em frente ao hospital que nesse tempo era na rua 8, entre as ruas 11 e 9, e onde o meu pai trabalhava. O meu pai atravessava a via-férrea e saltava o muro, evitando a passagem da rua 7 ou passar pela rua 19. No entanto, houve uma fase, aos 19 anos, que alterou a minha vida, quando o meu pai faleceu. E então, até aos 25, fiz de tudo, estudando e trabalhando. Nunca vacilei.

Desdobrou-se para “ganhar a vida”?
Vendi coleções de discos e livros. Ganhei uns dinheiros razoáveis. Nunca vacilei, um segundo que fosse, porque tinha que trabalhar para continuar a estudar. Nunca parei de estudar um ano sequer, mas é evidente que as dificuldades foram muitas.

Foi preciso enfrentar a vida e superar as adversidades…
Não podia hesitar ou ficar quieto à espera que as coisas acontecessem. Até dava aulas na [Cooperativa] Nascente. Tinha estado a ensinar no Externato Oliveira Martins, mas depois juntei um grupo de colegas e fui o mentor de um projeto de ensino na Nascente, com explicações e aulas noturnas para o antigo 5.º ano. Os nossos alunos faziam os mesmos exames dos alunos que frequentavam regularmente a escola oficial e diurna. Não eram exames especiais ou das ditas novas oportunidades. Tinham que estar bem preparados para os exames que eram feitos nas escolas. Os nossos alunos pagavam uma mensalidade que era calculada em função daquilo que apenas se tinha de pagar aos professores. Estive lá dois ou três anos a dar aulas de ciências.

Há alguma recordação especial dessa atividade semi-docente?
Há histórias engraçadas. Eram pessoas mais velhas do que eu. Já estava de serviço na Policlínica de Espinho e um casal velhinho só solicitava os meus préstimos, e antes das sete da manhã. Eles viviam na Ponte de Anta e eu tinha ensinado a filha, que era mais velha do que eu.

Antes ou depois das sete da manhã, a disponibilidade não era desgastante?
Nunca me senti cansado. O número do meu telemóvel é o mesmo desde os primeiros tempos em que surgiram os telemóveis, e sempre dei o número do telemóvel aos meus doentes. Todos os meus doentes, antes de me reformar, tinham acesso ao meu telemóvel, mesmo os do Centro de Saúde. Ligavam-me ao sábado, ao domingo, de manhã, à tarde e à noite. E ainda hoje me ligam. Entendia, e continuo a entender, que era e é a minha função. Cansa?! Não.

Não se cansava, por exemplo, aquando da acumulação de serviços?
Nem quando fazia serviços de urgência ao domicílio. Cheguei a trabalhar sete noites por semana e continuava a trabalhar durante o dia.

Mas, citando o povo, as canseiras não doem, mas moem…
Sim, mas isso foi noutros tempos em que era mais novo e aproveitava todos os minutinhos que podia para dormir e descansar. E agora?! Também não sinto nada. Não tenho dores aqui e acolá. Felizmente, para já, a minha saúde não tem nada de especial.

O médico foi o que sempre quis ser. Já em pequeno, Rogério Ramos era tratado em família por “doutor”

Quando é que abdicou de exercer serviço de urgência?
Deixei de fazer serviço de urgência há vinte e tal anos. Fiz a tropa e regressei a Espinho, para o Centro de Saúde. Fiz também serviço de urgência no Hospital de Espinho. Era tarefeiro. Voluntariei-me e o hospital contratou-me.

Depois da formação em Medicina no Porto, encetou o exercício profissional nos Hospitais dos Capuchos e de S. José, em Lisboa, e também fez a especialidade Medicina do Trabalho e foi convidado para a Fosforeira…
E fui dos últimos a fechar a porta. Era uma empresa com condições excecionais. E, assim era, há já muito tempo, pois nos anos 30 já havia médico, infantário e mamadeiras, que eram bancos corridos com divisórias em que as funcionárias vinham dar de mamar aos filhos que tinham na creche. Isto é luxo hoje em dia. Quando entrei, em 1986, eram 250 trabalhadores. Mas, antes, já tinham sido 700. A Fosforeira era a maior empregadora de Espinho. Atualmente são a Câmara, o Casino e a Eurospuma.   

O que é que o motivou a transformar o Centro de Saúde de Silvalde em Unidade Familiar de Saúde?

Já tinha idade para ter juízo aos 64 anos, mas projetei e defendi a criação da Unidade de Saúde de Familiar de Silvalde. Convenci-me, e ainda estou convencido, que de que desse projeto iria resultar num melhor serviço de saúde para a população. Tivemos consultas presenciais durante o período da pandemia. Está a funcionar muito melhor.

Artigo disponível, na íntegra, na edição de 25 de agosto de 2022. Assine o jornal que lhe mostra Espinho por dentro por apenas 32,5€.