Fogos florestais enlouquecem canais de TV em Portugal

Eu deixo pura e simplesmente de ver notícias na TV quando chegam os fogos florestais. Faz-me mal ver a excitação irresponsavelmente criminosa que reina nas redacções de TV pelo país fora. São horas e horas seguidas de directos ininterruptos sem qualquer racionalidade, dignidade ou mais-valia informativa sobre os incêndios.

Ressalvando o caso da RTP, que neste aspecto se tem portado uns furos acima dos canais privados (embora ainda com alguma cedência excessiva ao espectáculo), as direcções de informação dos canais nacionais não estão interessadas em informar de forma digna e racional sobre nada de nada. Estão interessadas é em dar espectáculo e em atrair audiências através de sensacionalismo histérico, veiculado através de directos constantes, mesmo quando não há razão nenhuma para directos. Não fazem informação, fazem entretenimento e captação de audiências utilizando como base material noticioso. A triste coisa que se chama, em linguagem técnica, ‘infotainment’ – uma mescla desordenada de information e entertainment que tanto degrada a informação como o entretenimento…

Para isso, despacham equipas de reportagem pelo país fora, atrás dos incêndios, as quais, em regra, para agradar às suas chefias, não hesitam em atrapalhar bombeiros e equipas de socorro em prol do espectáculo voyeurista.

Em meados de Julho, durante a primeira onda de incêndios vi uma repórter de TV a entrevistar um comandante de bombeiros numa frente de fogo, perseguindo-o com perguntas e perguntas sem parar, até que o senhor, depois de se ter escusado várias vezes delicadamente a continuar a conversa porque tinha trabalho urgente, sem resultado, acabou pura e simplesmente por virar costas com um grito “Deixe-me em paz! Não vê que estou a trabalhar?”…

No dia seguinte, um repórter da TVI/CNN afirmava, numa intervenção em directo, o seguinte: “48 graus, é o número que se quer atingir, hoje, aqui em Coruche. Se esse número [de graus] for atingido temos record batido e Coruche faz a festa”… enquanto no insersor, uma legenda ‘informa’ a audiência que “Coruche pode bater hoje recorde europeu”!…

Ou seja, 48 graus de temperatura, um inferno, será uma festa para os coruchenses, diz, todo contente, o senhor repórter da TVI/CNN! Pasmo total!

Esta frase é uma clara demonstração da tortuosa perversidade reinante na ‘cultura’ das redacções de televisão em Portugal (uma perversidade que já há muito contaminou todo o sistema de comunicação social nacional, sublinho).

Não há aqui nada mais que o aproveitamento mais desalmado e egoísta da desgraça dos incêndios. Zero objectividade, zero empatia, zero preocupações com o drama das populações. Há apenas oportunismo perverso e cruel da desgraça alheia. Faz-me lembrar o caso dos ladrões que aparecem nos grandes acidentes de avião ou comboio, para espoliar os feridos e mortos dos seus pertences. Paralelamente, estes “repórteres” pilham nas emoções das vítimas dos incêndios, mostrando como se afligem e choram ao ver as chamas a devorar as suas casas, colheitas ou animais, as suas vidas a esvair-se em fumo. Fazem deste drama um espectáculo. E insistem e voltam a insistir, sem qualquer espécie de pudor, perguntando uma e outra vez “Onde estava? O que sentiu? E agora que vai fazer?”…

E cuidam sempre de sublinhar a falta de bombeiros, de meios aéreos, aproveitando o alarme que provocam no povo para culpar alguém (como se fosse possível algum país ter bombeiros ou meios suficientes para responder a uma catástrofe destas!). Preocupação legítima? Não, apenas a introdução para a segunda fase do aproveitamento da desgraça, a passagem para o espectáculo de oportunismo político que se segue, invariavelmente. Uma vez as chamas extintas, prossegue o ‘infotainment’ dos fogos, desta vez na arena política, com acusações e inquéritos, etc…

Acresce que a exibição contínua de imagens de incêndios é contraproducente porque encoraja os pirómanos a passar à acção… Isto está estudado e comprovado. Este espectáculo dantesco, em exibição permanente nos noticiários, só poderá levar mais gente a atear fogos, na esperança de terem o seu momento de glória e de verem os aviões e os bombeiros em acção.

A exibição destas imagens devia ter um tempo máximo permitido (curto, o suficiente para dar a notícia e mais nada) por dia. Desta forma, os noticiários ver-se-iam obrigados a dar só o essencial. Compete aos órgãos profissionais dos jornalistas impor regras e disciplina nesta selva…

Mas os senhores directores de informação das televisões não querem saber disto para nada. Querem é encher os bolsos dos donos dos canais com conquista fácil de audiências voyeuristas que os incêndios garantem. Esta gente não tem nada a ver com o jornalismo, profissão que pratiquei toda a vida, durante quase quatro décadas. Só nos envergonham a todos! São desprezíveis!!!…

Em conclusão, cada vez mais me convenço que o directo é o maior inimigo do jornalismo, na medida em que, ao eliminar ou reduzir drasticamente o papel do mediador (o jornalista) elimina também a reflexão racional sobre a realidade, que constitui a missão essencial do jornalismo.

José António Pimenta de França
Jornalista

(O autor escreve de acordo com a antiga ortografia)