Temido balanço

Aquando do anúncio da saída de Marta Temido, muitas pessoas ligadas à área socialista vieram deixar rasgados elogios à ministra demissionária, lembrando o seu papel no “sucesso” no combate à pandemia e a sua coragem como ministra. É verdade que Marta Temido gozou de grande popularidade durante o período da pandemia e era, até há pouco tempo, a ministra mais popular do governo. Mas será que esta popularidade durante e depois da pandemia era merecida?

Até ao final de Agosto de 2022, Portugal estava apenas ligeiramente atrás da média da União Europeia em termos de mortes covid por milhão de pessoas (2415 em Portugal versus 2543 na União Europeia), à frente de Espanha (2371) e muito à frente da Suécia (1901), da Holanda (1296) ou da Dinamarca (1184). Onde Portugal ficou à frente foi na quantidade de necessidades médicas extra covid não satisfeitas nos primeiros 12 meses da pandemia. Em Portugal essas necessidades não satisfeitas corresponderam a 34% das necessidades totais, enquanto a média da OCDE andou pelos 22%, na Holanda foram apenas 15% e na Dinamarca apenas 10%, ou seja, é como se o sistema estivesse a funcionar quase em pleno. Gerir bem a pandemia não é fechar o sistema nacional de saúde para atingir um nível de mortalidade dentro da média. Gerir bem a pandemia teria sido manter boa parte do sistema a funcionar, não adiar consultas, cirurgia e exames essenciais, conseguindo ter menos mortes como aconteceu na Holanda ou na Dinamarca.

Marta temido até pode merecer um agradecimento por ter sido ministra num momento difícil, mas uma pessoa ser apanhada numa missão complicada não é suficiente para ser considerada muito competente. Comparência não é competência

Marta Temido esteve lá nessa altura. Este foi certamente um trabalho pessoal e mentalmente exigente que poucas pessoas desejariam ter. Mas o mérito de um trabalho não se mede pelo esforço ou sacrifício que a pessoa teve que passar: mede-se pelos resultados e esses resultados foram bastante abaixo daquilo que os melhores conseguiram. Não houve nenhum êxito do ministério no combate à pandemia, houve uma solução fácil: fechar o mais possível. Essa solução fácil não impediu que Portugal se mantivesse na média da mortalidade COVID e no topo dos países que mais necessidades médicas deixaram por cumprir com todas as consequências futuras que sentimos e continuaremos a sentir. Marta Temido até pode merecer um agradecimento por ter sido ministra num momento difícil, mas uma pessoa ser apanhada numa missão complicada não é suficiente para ser considerada muito competente. Comparência não é competência. Competência é juntar à comparência o cumprimento de forma exemplar, algo que os números não indicam.

Passado o pior período da pandemia, Marta Temido perdeu popularidade e por bons motivos. O regresso à “normalidade” revelou um sistema de saúde deficiente, incapaz de responder às necessidades regulares do país. Multiplicaram-se as notícias de serviços fechados, urgências encerradas e demissões em bloco. A chegada do Verão revelou uma completa ausência de planeamento de escalas para manter serviços abertos. As pessoas pagam impostos o ano todo e merecem ter o mesmo nível de serviços públicos todo o ano. Ninguém aceitaria que o seu fornecedor de internet ou eletricidade suspendesse o serviço durante algumas horas no verão, porque devem então aceitar um serviço abaixo do normal em algo tão importante como a saúde?

As odes e os agradecimentos a Marta Temido não têm razão de ser. Tanto na fase regular da sua gestão como na fase extraordinária da pandemia, o SNS não se saiu tão bem como os outros serviços de saúde europeus. Em ambos os casos, saiu-se pior e não se vislumbrou qualquer melhoria incremental. O choro das carpideiras socialistas pela sua saída é, claramente, exagerado.

Mas uma coisa é certa: há um conjunto de limitações do atual sistema que tornarão o trabalho de qualquer ministro da saúde muito difícil. Marta Temido pode sair, mas se o próximo ministro mantiver o mesmo sistema, dificilmente haverá mudanças substanciais na qualidade do sistema de saúde. Em primeiro lugar, há um problema de aumento de procura inevitável devido ao envelhecimento da população. Esta questão vai-se agravar nos próximos anos à medida que a geração nascida nos anos 50/60 entrar nos 70 anos e começar a precisar de mais cuidados médicos. Esta situação previsível há muitos anos, deveria ter fomentado um aumento na formação de médicos especializados, mas as vagas de especialidade continuam escassas em muitas áreas de formação. Formam-se poucos médicos em Portugal e muito menos médicos especialistas do que deveria. Como, ao mesmo tempo que a população envelhece, os médicos também envelhecem e abandonam a prática, nos próximos anos poderemos ter um enorme problema de falta de médicos para as necessidades. Sem mudar o sistema de formação de médicos de forma a abrir mais vagas de especialidade, nem com muito boa gestão e todo o orçamento do mundo conseguiremos resolver o problema.

Simultaneamente, para os poucos recursos que há, existem poucos incentivos à eficiência na gestão. O sistema atual tem, pelo contrário, grandes incentivos à ineficiência o que justifica os ganhos grandes que acontecem quando um hospital passa a ser gerido no âmbito de uma parceria público-privada. De acordo com o Tribunal de Contas, as PPPs hospitalares “apresentaram globalmente indicadores de eficiência económica e operacional superiores à média dos hospitais comparáveis” de gestão pública. No mesmo relatório, o Tribunal de Contas afirmou que as PPPs hospitalares “geram poupanças para o Estado” e que os utentes “estão protegidos por padrões de qualidade mais exigentes”. Apesar disso, tem havido relutância em expandir o modelo e ainda mais relutância em mudar o modelo de gestão dos hospitais públicos para algo mais semelhante ao das PPP. Enquanto isto acontecer, podemos ir mudando de ministro periodicamente que os problemas se manterão.

Mesmo que houvesse incentivos à boa gestão, muitas das ferramentas de gestão estão já muito antiquadas. Processos e sistemas desatualizados prejudicam o funcionamento do sistema. Tudo somado, falta de especialistas, falta de dinheiro para os reter no SNS, um modelo de prestação de serviços com incentivos perversos à ineficiência e ferramentas de gestão desadequadas, tornam muito complicado para qualquer ministro que não queira alterar nenhuma destas coisas mudar o que quer que seja para melhor, mesmo que tenha uma enorme injeção de dinheiro. Há problemas que o dinheiro não resolve, nem sequer disfarça.

Feitas as contas, o melhor elogio que alguém, com muito esforço, pode tentar fazer a Marta Temido é que não será fácil fazer melhor do que ela sem mudar substancialmente a forma de pensar o sector por parte do Partido Socialista. Para infelicidade de todos nós, é bastante possível que o próximo ministro da saúde acabe por se revelar tão mau como a que agora se demite.

Carlos Guimarães Pinto

Colunista

(Escrito em desacordo ortográfico)