A vida são dois dias. Mas o luto são três.

A vida são dois dias, o luto são três, e as transmissões televisivas com pivots e repórteres com voz embargada são intermináveis. O nosso Jorge Sampaio levou com um dia de luto e já foi com sorte. Assim como as vítimas da Covid-19, mas essas vamos esquecer facilmente.

Os britânicos estão de luto depois da morte da Rainha Isabel II. Quer dizer, nem todos os britânicos estão de luto pela morte da monarca que mais tempo esteve no “trono”. Como aliás – viu quem quis – mostraram as várias imagens de malta que é absolutamente contra esta coisa arcaica (para não dizer ridícula) de ainda haver monarquia. Mas esses, os dos cartazes a dizer que ninguém elegeu aquela malta, foram detidos. Um perigo para a sociedade dos privilégios instalados. Não é que todos os britânicos idolatrem a coroa. É que, pelos vistos, os que pensam por si, não podem pensar de forma contrária à máquina real. Quem for contra a existência da coroa está a dividir o país. Porque aquilo é uma democracia, mas já se sabe quem manda.

Consideramo-nos evoluídos e olhamos para os dias de hoje e gostamos de engrandecer a ideia de que somos contemporâneos, que a sociedade vive hoje respeitadora da soberania dos Estados e porta-estandarte da democracia (quer dizer, menos os russos na Ucrânia e os americanos (mais os netos de sua majestade no meio das tropas) no Iraque e no Afeganistão, mas isso são outros temas). Mas continuamos a celebrar aqueles que representam o domínio imperial, a colonização, a escravatura. Nada como uma boa história de rainhas e princesas para fazermos de conta que isso não teve relevância, e muito menos consequências. Príncipes acusados de abusos sexuais? Quase soa a romance literário, na verdade. Onde é que já vimos todo este branquear de atrocidades, floreado com conceitos de conquistadores e difusores da civilização? Nos livros da nossa própria História, que mostram o Brasil, Angola, Moçambique como lugares onde fomos pregar os (nossos) bons costumes, e impor a nossa realidade e forma de vida.

Diz, quem não nega, que os atos de “ensinar boas maneiras” aos nativos, a exploração dos recursos de países como a Índia, os campos de trabalho escravo, as torturas perpetradas por militares, a repressão a homossexuais, a desculpabilização de criminosos são coisas do passado. Ou pior, inventadas.

E, claro, é pleno de sentido celebrar o “mais longo governo, reinado (o que lhe queiram chamar) da História”. Sim, daqueles conquistados por mérito, sufrágio e escrutínio contínuo. Ah não foi desses? É que a mim parece-me até de valor celebrar quem consiga a proeza de viver até aos 96 anos, claro que sim. Agora, ter estado no trono por 70 anos? Lá está, sem ir a eleições, a única proeza de Isabel II foi manter-se viva. Sem ir a votos pelo povo é fácil.

É claro que, dir-me-ão, mesmo que fosse a eleições, os britânicos têm uma adoração tal pela figura que lhe dariam uma esmagadora maioria absoluta. Sim, há muitos países assim, onde se vota com base em propaganda, em lavagens da imagem e camuflagem ou distorção de eventos. Ditadores desse tipo, com anos de governo, também não faltam.

A rainha de Inglaterra, líder da Commonwealth, teria hoje poderes mais limitados. Terá mesmo? Na teoria, sim. No papel, com certeza. Mas e a influência, também é mito? Pode não governar, mas manda muito. A serventia que tem hoje não justifica o perdão pelo que fez. Vendeu o projeto colonial, o racismo justificado e há quem continue a apelidar isso de grande feito.

Espanta-me que os britânicos, que se pisgaram da União Europeia fartos de ver países menos ricos a beneficiar da pertença de um país rico como o Reino Unido, achem normal sustentar uma família real. Ver tanta riqueza, tanto privilégio, tanta mordomia, ouro, palácios, coches e sei lá mais o quê, numa relação com a balança pouco ou nada equilibrada.

Espanta-me que prefiram ignorar como, diz o The Guardian, numa lei sobre transparência financeira para empresas, foi acrescentada uma cláusula por exigência do advogado da rainha, de forma a ocultar do público a riqueza privada “embaraçosa” de Isabel II. Ou que foi modificado um projeto de lei, ainda este mês, para que a rainha se tornasse a única pessoa na Escócia que não está obrigada a facilitar, nas suas terras, a construção de infraestruturas para aquecimento de edifícios usando energia renovável.

E também não há cá polícia a entrar nas propriedades privadas da rainha sem a sua permissão, nem sequer para investigar crimes contra a vida selvagem ou por poluição ambiental

Pormenores. Apenas alguns de entre 160 isenções personalizadas para que a rainha, enquanto cidadã privada, não tenha de cumprir determinadas partes da lei britânica. Alguns vêm – obviamente, de tempos medievais, quando os reis eram (eram?) absolutos e intocáveis, mas outros são bem modernos

Estes três dias de luto nacional mostram como ainda não estamos preparados para trazer à luz o nosso próprio papel como país colonizador, explorador, usurpador.

A morte de Isabel II é o fim de uma era. Esperamos que seja o princípio do fim da monarquia, dos privilégios. Ainda temos uns aninhos do filho – aquele cuja única coisa que fez a vida toda foi esperar até ao dia em que seria rei. E agora vai fazer exatamente o mesmo nada, mas com uma coroa na cabeça – e pode ser que esta fantochada se vá diluindo e perca o “glamour”, a devoção cega e assustadora.

Que os três dias de luto nacional tenham sido pelas vidas, e futuros ainda para lá da velhinha com ar simpático, sentido de humor e que gosta muito de cãezinhos (de raça, não há cá rafeiros) e de nós, que o regime imperial destruiu. Lamentamos sempre a morte, mas lamentamos todas por igual. Longa vida ao povo e a quem por ele luta. Não quem dele abusa.

Estes três dias de luto nacional mostram como ainda não estamos preparados para trazer à luz o nosso próprio papel como país colonizador, explorador, usurpador. Para admitir como isso não nos torna “heróis do mar”, nem uma “nação valente e imortal”. Para passar da narrativa do mundo desenvolvido a trabalhar para a prosperidade do mundo subdesenvolvido para a assunção de que fomos – e somos – um país que explora e tantos ainda são os explorados do nosso privilégio.

Cláudia Brandão

Colunista