Lá longe, a Nação construída sem Estado

1 – Ao longo das últimas quatro décadas, participei em inúmeros colóquios e debates sobre a emigração portuguesa, mas, quando olho para trás, consigo apenas recordar alguns, e raras vezes na integralidade. O processo seletivo da memória permanece um mistério. Há certas frases, minhas ou dos interlocutores que resistem, intactas, talvez por serem mais insólitas ou curiosas.

Como é óbvio, recordo, com mais precisão, nas suas traves mestras, o discurso inspirado na realidade das migrações e nas políticas então desenvolvidas. Aliás, não me faltam, para o relembrar, recortes de imprensa, artigos e publicações de época. Foi o associativismo, e o seu papel na construção das comunidades portuguesas, o tema que abordei em Ovar, numa tarde de Agosto de 83 ou 84, num encontro não muito diferente de tantos outros, que o simples comentário de um jovem jornalista tornou inesquecível. Disse-me: “A Senhora Doutora fala como se não fosse do Governo”. O tom da afirmação não pretendeu ser crítico, negativa ou positivamente, mas sim factual. Ou assim me pareceu. E a afirmação era pertinente, porque eu acabava de descrever o universo das comunidades portuguesas da Diáspora, que deve a sua existência às instituições criadas e mantidas pelos cidadãos, não ao Governo. Assim se formou o que alguns chamam o “outro Portugal”, nascido e preservado fora do território –  fantástico espaço cultural, hoje, enfim, visto como parte da Nação. A Nação, sociedade civil sem Estado, que aí não teve o menor mérito e nem sequer deu pela sua importância, até data bem recente. Vários ilustres pensadores, (como Vitorino Magalhães Godinho, o General Eanes ou Sá Carneiro, por exemplo), no período pós-revolução, vieram relacionar tão justo como tardio reconhecimento à perda do Império, que deixou um vazio, logo preenchido pela “descoberta” da Diáspora. Afinal, na geografia do antigo Império, o que desapareceu, de vez, foi o domínio do Estado, o projeto estatal, não a presença perene corporizada pelos emigrantes nos territórios onde, ao longo de séculos, escolheram viver.

2 – O caso do Brasil é, sem dúvida, o exemplo mais completo e elucidativo, porque foi, antes e depois da independência, e até meados do século XX, o destino favorito da esmagadora maioria da nossa gente. Todos os que partiam não eram demais para a colonização de um domínio tão extenso, mas o êxodo constante foi quase sempre considerado excessivo para um país com a nossa diminuta dimensão. O despovoamento do território pátrio assustava os poderes públicos, que tentaram restringir os caudais migratórios, por todos os meios, nomeadamente uma vasta e ineficaz legislação proibitiva. Os homens faziam da Lei letra morta, e iam clandestinamente, (se necessário). E nem a independência brasileira, em 1822, travou o imparável movimento, antes pelo contrário… Na verdade, a emigração portuguesa foi, e é, na essência, uma aventura individual (ou familiar), multiplicada por milhões, e este seu caráter voluntário, espontâneo, que a marginalizou face ao Poder, explica o singular relacionamento humano que a uniu a outros povos.

As únicas políticas públicas neste sector são as tentativas (falhadas) de controlar as saídas, através de regulamentação quase sempre limitativa. As pessoas persistiam no abandono da terra de origem, por razões económicas, mas levavam o país no coração e souberam unir-se para fundar e dar continuidade a comunidades organizadas à imagem e semelhança daquelas que conheciam no país, suprindo as omissões governamentais, no campo social (com uma rede de sociedades mutualistas e beneficentes) e cultural (com as agremiações literárias, as escolas, os grupos de folclore, de teatro…). Isso aconteceu por todo o lado, com destaque para o Brasil, onde, ainda hoje, em diversos Estados, os hospitais das beneficências lusas são dos melhores, os mais modernos (o do Recife continua a ser, suponho, o maior de toda a América Latina), o mesmo se podendo afirmar dos clubes recreativos e desportivos, dos lares de idosos, dos “gabinetes” com grandiosas sedes e bibliotecas (só a do Rio de Janeiro possui mais de 300 mil volumes e muitas edições raras!). E o fenómeno repetiu-se onde quer que os portugueses se radicaram, sempre com extraordinário pendor associativo, que não cessa de nos maravilhar. Mas, ainda agora, conhecemos melhor as histórias de vida dos emigrantes do que a história de vida das instituições geradoras de autênticas comunidades.

3 – Em Ovar, como fiz em tantas outras cidades (e ainda faço, se tenho oportunidade…), limitei-me a dar testemunho daquele universo, com um “saber de experiência feito”. Quando, em janeiro de 1980, iniciei o trabalho no setor da emigração, conhecia casos concretos, antigos (na minha própria família) e mais recentes (residi em Paris, no final dos anos 60…). Nos primeiros três meses, procurei não só compulsar os dossiers recebidos do meu antecessor (Mário Neves, notável jornalista e diplomata), e apresentados pelos serviços, como preparar projetos legislativos inovadores, como a criação do Conselho das Comunidades, e a estudar a história das nossas migrações. Nada disso me preparou para o “descobrimento” da Nação extraterritorial, através de contactos diretos com as comunidades das Américas, África e Europa. As minhas visitas centravam-se nesse nosso novo mundo e, por isso, nem chegava a sentir-me no estrangeiro – regressava de um Portugal ao outro, com a fantástica sensação de ter percorrido milhares de quilómetros de voo, sem ultrapassar as fronteiras humanas e culturais do meu país! Aprendi a ver o fenómeno associativo com outros olhos – lá fora, primeiro, e, depois, cá dentro também. Ganhei a consciência da importância do associativismo de cada terra. Sei que, por exemplo, Espinho não seria o que é, nem poderia manter a sua identidade sem o esplêndido conjunto de instituições de solidariedade, cultura, desporto e recreio de que tanto pode orgulhar-se. Exatamente como acontece com a presença portuguesa, a que um forte movimento associativo deu, e dá, visibilidade em todo o mundo, à margem de quaisquer apoios do Estado.

Se os governantes, em outras áreas, reconhecem os erros do passado e apresentam às vítimas, pedidos de desculpa, porque não ensaia-lo também no campo da emigração, constatado o abandono a que os compatriotas foram votados lá fora? E mais: porque não reconhecer, também, que, apesar dos progressos registados desde a década de 70, estamos ainda longe de tratar, em condições de igualdade, não só os cidadãos, como o movimento associativo no estrangeiro?

Nunca hesitei em fazê-lo, por dever de justiça. E não só… Como pressentiu o perspicaz jornalista de Ovar, também por gosto, por afetiva adesão a uma sociedade sem Estado…utopia obviamente irrealizável dentro do território onde o Estado deve exercer a sua soberania.

Manuela Aguiar

Ex-vereadora da CM Espinho e secretária de Estado das Comunidades