Do nosso (m)ar

Talvez seja – só pode – da década a morar fora daqui. Ia escrever “a viver fora daqui”, mas toda a gente sabe que não fica bem começar uma crónica a mentir. Quase toda a gente, vá, que também há políticos que escrevem crónicas.

Voltando ao que interessa, moro fora de Espinho há uns anitos, mas continuo a viver cá.

De facto, não vejo outro motivo que não seja o défice prolongado de Código Postal, invariavelmente abaixo do valor de referência 4500, para ter começado recentemente a sentir em cada chegada a Espinho que o ar desta cidade é diferente. E falo em sentido literal: se me trouxessem de olhos vendados, bastaria respirar para me saber em casa. Bem reconheço que em Cacia, por exemplo, sentem o mesmo, mas por motivos do extremo oposto do espectro sensorial.

Sempre acreditei que as pessoas são feitas dos sítios em que nascem e crescem, feitas do mar ou dos rios, dos quarteirões recortados em quadrículas ou cheios de colagens de ruas, avenidas, travessas, becos, vielas ou sem quarteirões de todo, de planícies ou de montanhas; mas nunca tinha pensado em pessoas feitas do ar que respiram. Pelo menos, nunca de forma tão evidente como as chegadas ao nosso cantinho me têm feito crer ultimamente.

Há um pormaior a ressalvar: em Espinho, tenho o privilégio de trabalhar junto ao mar. É esse o lugar que me recebe quase sempre e que terá parte grande no encanto que me toma sempre que saio do carro e respiro. Em boa verdade, até já o senti em dois outros locais: Ilha Terceira, nos Açores, e Ilha do Príncipe, em São Tomé e Príncipe. Ambos com mar, como Espinho, mas com a concorrência desleal de paisagens verdes que só acabam na areia e que fazem a cada vez mais minguada Bicha das Sete Cabeças (ou Parque da Cidade) parecer aqueles vasos em miniatura que se vendem junto às caixas dos supermercados. Seria mais do que injusto comparar o “nosso” oxigénio com o “deles”.

Muitos dirão que um coração romântico e uma cabeça com imaginação são mais responsáveis por este fenómeno do que propriamente a boca e um nariz-de-septo-ainda-mais-desviado-tal-a-invasão-de-zaragatoas-dos-anos-recentes. Não sei, não vou tentar saber, não quero, prefiro acreditar que o (m)ar que me criou é o mesmo (m)ar que agora se apruma para me receber. De alma e coração, pés e cabeça, boca a sorrir de orelha a orelha e o tal nariz massacrado por testes pandémicos.

“É impossível lembrares-te disso, Ricardo Nuno!”, ouvi em todas as vezes em que era colocada em dúvida uma memória que me levava mais atrás no tempo do que seria suposto – tudo nesta vida, não se entusiasmem! Mas se as imagens sempre estiveram presentes em instantâneos bem suportados por álbuns fotográficos recheados, tento agora recordar-me ao que cheirava Espinho enquanto me fazia crescer.

Em momentos de dúvida, já sei o caminho: está na altura de voltar a tocar em Espinho, respirar como só cá (já esclarecemos a concorrência desleal, Terceira e príncipe!) e ganhar fôlego para voltar à estrada

E, de repente, esse ar invade-me: as escadas dos Prédios do Violas, a Escola da Tourada, o Pavilhão da Académica, depois o do Espinho, depois os túneis do estádio, para onde fugíamos sempre que o Sr. Abílio se distraía por dois segundos; as peixeiras que passavam para casa, o caminho a pé pela linha do vouguinha até Silvalde, às cavalitas da Dulce ou do Guedes, o’ Ciclo’ e a ‘Industrial’ e o ‘Liceu’; o Salão Paroquial, os croissants do Palácio, o perfume a bola de Berlim na Rua 19 pela madrugada. O mar, o nosso mar! E o nosso ar que, afinal, esteve lá sempre e em cada sítio e que de poucos quilómetros precisou para provocar saudades.

Foi esse (m)ar que me viu querer ser músico e me serviu de palco para estrear quase todas as bandas que criei. Em momentos de dúvida, já sei o caminho: está na altura de voltar a tocar em Espinho, respirar como só cá (já esclarecemos a concorrência desleal, Terceira e Príncipe!) e ganhar fôlego para voltar à estrada.

Foi esse (m)ar que me viu ser jornalista, tantas e tão boas recordações daqueles tempos no Bancada Central e na Rádio Costa Verde e no Jornal de Espinho, onde cheguei um dia a ser Chefe de Redacção (foi mesmo um dia, que o feitio da altura era ligeiramente mais torcido). E O JOGO, onde fui “o miúdo de Espinho”, com tanto orgulho.

Foi a esse (m)ar que durante 11 anos regressei bancário, numa relação de amor a ódio à medida que se tornava tão evidente que o caminho era outro. Carreira pelo Porto e tal, até que chega o dia do “vais trabalhar para Espinho”. As correntes do nosso (m)ar a fazerem das suas e a trazerem-me para casa até a estrada se tornar mais nítida.

É esse (m)ar que me traz à Defesa de Espinho, com o ego insuflado por tamanha honra. Escrevo a primeira crónica sentado à escrivaninha do meu Avô, que mesmo a viver (a morar, a morar…) no Algarve é leitor inveterado deste jornal. E é, também, um verdadeiro espinhense, um dos principais responsáveis pela forma como respiro a nossa terra.

Mais do que o Código Postal com que estamos marcados nas diversas fases da vida, saibamos sempre viver Espinho, fazer por merecer o que herdamos e, acima de tudo, criar condições para que as próximas gerações inspirem e expirem por cá desta maneira. Com brio, com raça vareira e com a alma a sorrir sempre que ouvirem “é o miúdo de Espinho”.

Quando nos disserem “tens tão bom ar” vamos saber de onde ele veio.

Ricardo Fidalgo

Músico