Carlota Galante, nasceu em Espinho e, aos 78 anos, ainda apregoa o “é de Espinho viva!”. Peixeira desde os 10 anos de idade, foi esfaqueada e esteve à morte, mas sobreviveu para criar os seus três filhos. Assistiu a algumas tragédias no areal da praia dos Pescadores, mas a alegria e a boa-disposição ainda resplendem de um rosto com as rugas, as marcas do tempo. A imagem da Rainha das Peixeiras perpetua, numa pintura na parede de um edifício, à beira-mar, como símbolo dos pescadores de Espinho e das gentes do mar.

Foto: Sara Ferreira

Ainda se recorda da sua infância?
Nasci no hospital de Espinho e, depois, vim morar para o Bairro Piscatório. A minha mãe morava na rua 2 antes das casas terem sido engolidas pelo mar. No Bairro construíram as casas para os pescadores e foi para lá que fomos morar. A renda era de 40 escudos [20 cêntimos] e pagávamos três contos [15 euros] para termos um galinheiro para criação de galinhas no quintal.
Com 10 anos já andava a vender peixe, com a giga [cesto que as peixeiras usavam para transportar o peixe] na cabeça, pelas ruas de Espinho.

Tão pequena e já conseguia vender peixe?!
A minha mãe também era peixeira. Um dia pedi-lhe que me deixasse vender o peixe. Ela não queria porque dizia que eu era muito pequena. Insisti e ela lá acabou por me deixar vender. Vim muito contente e orgulhosa porque toda a gente me comprava o peixinho.

Quanto ganhou com a sua primeira venda?
Trouxe para casa cinco escudos [2,5 cêntimos]. Na altura era muito dinheiro. Cheia de brio mostrei à minha mãe o que ganhei. A partir daí comecei a comprar o peixe para vender e fiz sempre isso até casar.

É peixeira mas nem sempre morou no Bairro Piscatório, correto?
Na zona onde estão os apartamentos da Marinha havia o chamado Bairro dos Pobres. Uma vizinha perguntou-me se não queria ir para lá tomar conta de um senhor idoso. Nessa altura já tinha duas filhas e aceitei. Mais tarde, o senhor morreu e fiquei nessa casa que tinha apenas dois quartos e, por isso, era muito pequena.
O meu sogro morava na casa onde resido atualmente. Era viúvo e casou com uma tia minha e foi morar para outro lado, O meu cunhado ficou nesta casa e pedi-lhe para trocar de casa comigo e ele aceitou. Ajeitei a casa, porque estava muito velhinha e fiquei nela até aos dias de hoje.

E o seu marido, também é da arte?
Antigamente o meu marido trabalhava em Matosinhos, nas traineiras. Sempre foi pescador. Tenho três filhos, duas raparigas e um rapaz.

Voltando ao passado, como comprava o peixe para vender?
Participava no leilão que se fazia na praia. Comprava uma giga de peixe. Mas também vendia o peixe às outras peixeiras.

Como fazia para vender?
Começava a apregoar “é de Espinho viva! É do nosso mar!…” e as freguesas chamavam-me a Carlotinha. Vendia-lhes sardinha pequenina, carapauzinho, faneca e lulas. Costumava parar para vender junto ao horto, na rua 19, em frente à Farmácia Santos. O dono desta farmácia gostava muito de fanecas pequenas. Todos gostavam de mim, talvez por ser pequenina!

Nunca enganou um freguês?
A filha do proprietário da Farmácia Santos dizia-me que as fanecas eram caras e, um dia, deixei pelo preço que ela ofereceu. Enquanto foi buscar o dinheiro para me pagar, peguei em duas fanecas maiores e escondi-as por debaixo do oleado da giga. Ela desconfiou e perguntou-me pelas fanecas maiores. Respondi-lhe que o pai só gostava das mais pequenas.

Alguma vez foi enganada?
Um dia, na feira, um cigano abordou-me e insistiu para que eu comprasse um anel. Disse-lhe que não tinha dinheiro. Tanto insistiu que lhe dei 20 escudos [10 cêntimos], julgando que o anel era de ouro! Fui à ourivesaria Pinho para verificar se o anel era mesmo de ouro. Não era. Expliquei ao ourives que tive medo que o cigano me matasse e, por isso, dei-lhe o dinheiro que tinha.
Fui para casa a chorar porque tinha sido enganada. Contei à minha mãe e ela disse-me que a minha atitude foi a correta.

Entrevista completa na edição de 26 de janeiro de 2023. Assine o jornal que lhe mostra Espinho por dentro por apenas 32,5€.