Há legados desgovernados

O corredor do supermercado lá dos prédios sempre me pareceu imenso, mas naquele dia era interminável: começava na zona das caixas, como de costume, mas não se vislumbrava ao fundo a fruta, a assinalar o fim do paraíso de chocolates e chicletes e sugus.

Naquele dia em que o suor saía das mãos e o coração de criança batia mais do que nos jogos no pátio, o objectivo era chegar ao tubo de Allegro, os Toffee Caramelos cujo sabor ainda cá está, alojado no cérebro e nas papilas, 30 e tal anos depois. Passaram-se horas nos segundos que durou a caminhada das caixas aos Allegro e dos Allegro ao raspanete da zelosa Lurdes: “Ricardo, vai pôr isso que tens no bolso onde estava e eu não conto aos teus pais.” O corar de vergonha foi bem mais pesado que o caramelo que voltou para a prateleira. Mas, ainda assim, insuficiente para servir de lição de vida.

Uns anos mais tarde, na Madeira, a estupidez de grupo e o fervilhar da adolescência (ou o fervilhar de grupo e a estupidez da adolescência, escolha o leitor) misturaram-se na altura errada: a equipa de voleibol em que jogava – 85% dela, para ser mais preciso e justo para os que tiveram a cabeça no lugar – achou boa ideia trazer de graça os típicos bordados locais pensando que o idoso que os vendia não ia dar pela patifaria.

O filme podia ser o mesmo, com ligeiras nuances: em minutos que pareceram horas, a saída da loja, qual caminhada triunfal dos rufias, a entrada no autocarro rumo ao Funchal, o idoso em fúria a entrar por lá adentro e os bordados devolvidos a quem pertenciam. E os penosos dias que se seguiram e o penoso castigo do clube no regresso a casa e a vergonha, a vergonha!

Porque não é só o medo de um par de estalos; mais do que isso, é o medo de defraudar expectativas, de frustrar a educação que nos dão. De não honrar o legado. Voltei a sentir que a vergonha enrubesce mais a tez do que aquele par de estalos mais do que merecido. Desta vez serviu de emenda.

Colados os telhados de vidro, olho à volta e vejo tudo em cacos. A moral em cacos, a honradez em cacos, a seriedade em cacos, até a inteligência rachada a meio pela esperteza-saloia. Onde, como e por que é que esta gente que não cora de vergonha se acha no direito de escalar à socapa e fazer de nós parvos? De receber valores chorudos deste, para promover estoutro, influenciar aquele, beneficiar aqueloutro?

Um dia sonhei que Espinho estava nas capas dos jornais nacionais durante dias e que abria os noticiários da televisão. Eram as praias e as ondas magníficas; o ir a pé para qualquer lado; os melhores gelados durante o dia e as bolas de Berlim de madrugada; um amor ímpar pelo clube da terra; o cheirinho a peixe grelhado. Tudo com fotos e letras gordas e o entusiasmo indisfarçado dos pivots. Devemos mesmo ter cuidado com o que desejamos, não vá o universo entender só metade e transformar o sonho em pesadelo.

O poder, o dinheiro e o poder do dinheiro cegam fácil e rapidamente os pequeninos que tentam parecer grandes. Mais ainda se for este o legado que lhes deixaram, não necessariamente em casa, mas nos meios em que se movem – não há melhores desculpas do que “o anterior também fazia”, “se não fosse eu era outro”, “em todo o lado é assim”.

É precisamente por ser “em todo o lado assim” que cada vez mais desacreditamos. Deixamos de querer saber, deixamos de escrutinar, deixamos de participar, deixamos de votar. E deixamos que, perigosamente, emirjam fenómenos populistas que prometem observar os deveres mas que, quando dermos por ela, nos levaram os direitos.

Aqui e no resto do país, e não apontando o dedo a qualquer nome em específico enquanto os tribunais não o fizerem primeiro, urgem lufadas de ar fresco que soprem tão mas tão forte, que levantam o pó mais entranhado nos nossos organismos públicos e devolvem o país aos cidadãos, como se idealizou em Abril. Hoje não há um ditador, é verdade, mas há políticos de tal forma reféns do carreirismo que ameaçam tornar (já tornaram?) a nossa democracia num salão de jogos. É bom perceber que há quem comece a pegar nos comandos e os ejecte enquanto é tempo, mas falta fazer mais, muito mais.

Há uns anos, nas viagens de e para Aveiro, todos os dias aprendia com o Albano, meu amigo e colega de curso. Eu acabado de chegar à maioridade, cheio de ideias utópicas; ele dez anos à frente, muito mais esclarecido, tanto por ser um leitor acérrimo de autores e jornais de referência, como pelos inúmeros caminhos da vida que já tinha percorrido até aí.

Nas nossas saudáveis discussões, várias vezes eu defendia que as maiorias absolutas corroíam uma democracia tão jovem e imatura como a nossa, pela incapacidade de governarem distantes dos interesses e dos aparelhos e sem uma oposição que pudesse agir quanto a isso. O que vejo, agora, é que os interesses e os aparelhos estão lá sempre, independentemente das percentagens (des)confiadas a cada cor. Apesar de as maiorias poderem facilitar a opacidade, também a tornam potencialmente mais trapalhona, mais descarada e mais fácil de apanhar. A solução é só uma: todos nós, os que carregamos o legado de um país maravilhoso que não queremos desbaratar, temos de ser atentos, exigentes e interventivos. E dignos. Não há caramelo que valha a pouca-vergonha.

Ricardo Fidalgo

Músico