O Portugal dos pequenitos

1 – A maioria dos nossos políticos persiste em tratar o Brasil como um país estrangeiro, igual a qualquer outro, e em entender a expressão “povos irmãos” como mera retórica. Erro tremendo, tanto numa perspetiva histórica, como na valoração da realidade atual e do seu possível dever – a “história do futuro”, de que falava Agostinho da Silva.   

Até meados do século XX, emigrar foi sinónimo de êxodo para o Brasil. A partir daí, os movimentos migratórios repartiram-se significativamente por outros destinos, mas nem por isso perderam a sua importância para as comunidades portuguesas e luso-brasileiras, que sobrevivem nos laços de ligação individuais e num admirável conjunto de instituições: “Gabinetes de Leitura, Sociedades de Beneficência, magníficos hospitais, centros culturais e recreativos de uma dimensão prodigiosa, grandes clubes de futebol, como o “Vasco da Gama” do Rio de Janeiro, a “Tuna Lusa” de Belém  ou a “Associação Portuguesa de São Paulo”. No tempo presente, para além dessa visível presença cultural e social, os dois Estados estão ligados pelo Tratado de Igualdade de Direitos de Portugueses e Brasileiros, que instituiu uma verdadeira “cidadania Luso-Brasileira”, muito mais generosa do que a “cidadania europeia”, ao conferir aos nacionais de um país residente no outro, direitos iguais aos dos cidadãos naturalizados.

A iniciativa de aprofundar os sucessivos tratados de Igualdade, assinados a partir da década de cinquenta no século XX, foi sempre brasileira – impulsionada, é certo, pelo querer e pelo prestígio das comunidades portuguesas. Em 1988, os constituintes brasileiros avançaram para o reconhecimento aos portugueses de direitos próprios da nacionalidade – o voto em todas as eleições, a elegibilidade como autarcas, deputados, senadores, o acesso à magistratura judicial, aos mais altos postos da função pública e a cargos no governo, a nível estadual ou nacional. E, hoje, por todo o Brasil, são muitos os que beneficiam da aplicação individual do Tratado de Igualdade, reconfigurado pela Constituição brasileira, em 88, e pela Constituição portuguesa em 2001.

Atendendo à proximidade do Dia Internacional da Mulher, qui deixo dois bons exemplos no feminino: o da médica Manuela Santos, que foi, há já muitos anos, a primeira mulher Secretária do Estado do Rio de Janeiro (na pasta da Saúde) e o da grande atriz e empresária teatral Ruth Escobar, a primeira mulher deputada numa Assembleia Estadual (a de São Paulo), e, depois, a primeira representante do Brasil na ONU para as questões da igualdade. Natural do Porto, Ruth tornou-se a portuguesa mais famosa do país de acolhimento, uma figura icónica, que Portugal teima em não reconhecer. Nunca se naturalizou brasileira, muito embora para a ONU viajasse com passaporte diplomático.

Os constituintes brasileiros aprovaram este estatuto (inédito em direito comparado, único no mundo atual) sem hesitação e por unanimidade, com uma única exigência: a de haver reciprocidade por parte de Portugal.  Na Assembleia da República, eu própria encabecei os projetos de dação da reciprocidade, com a alteração do art.º 15º, em duas revisões constitucionais. Em 1989, os dois maiores partidos, PSD e PS, mais o PCP, derrotaram a emenda pela abstenção, apesar de deputados de todos os partidos lhe tenham garantido uma maioria simples. Em 1996, apenas uma parte do PS votou contra, e tanto bastou para inviabilizar a necessária maioria de 2/3. Finalmente, em 2001, foi alcançado o consenso para consagrar a reciprocidade. Tratou-se de uma revisão pontual da Constituição, destinada a permitir a nossa entrada no Tribunal Penal Internacional, mas os partidos alargaram os seus projetos de revisão a um restrito número de alterações prioritárias. O PSD assim considerou a reciprocidade, que tardava. De início, o Grupo Parlamentar estava renitente, mas eu consegui o (fácil e inequívoco) apoio do presidente do partido, Durão Barroso. No PS encontrei outro poderoso aliado extraparlamentar: o Dr. Mário Soares! Por indicação do PSD foi, na sua qualidade de antigo Presidente da República, convidado a intervir numa audição pública da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, onde com um depoimento arrasador “obrigou” o seu próprio partido, a dar, logo ali, um “sim” imediato e definitivo. As palavras lúcidas e corajosas do Dr. Soares fizeram manchetes de imprensa, tiveram enorme impacto, e, assim chegou a bom termo a mais dura “cruzada” em que, como deputada da emigração, me envolvi, por convicção e por dever de ofício, com muitas negociações de bastidores.

2 – Curiosamente, a batalha constitucional, que se arrastou em São Bento até 2001, mostrou a inexistência de linhas de demarcação esquerda/direita, que tão nítidas são em outros domínios – veja-se o da imigração, onde, à direita, o presidente Marcelo está quase sozinho nos seus gestos solidários de compreensão… Já na querela da reciprocidade o que dividiu os notáveis foi a vertente cultural do problema, centrada na história das migrações e nos elos da língua. Contra foram o PSD com Cavaco e Nogueira, e o PS com Almeida Santos, a favor o PSD com Marcelo e Barroso, Barbosa de Melo, Pedro Roseta ou Rui Rio, e o PS pela voz de Mário Soares, e dos deputados Manuel Alegre, Guterres, Alberto Martins, Raúl Rego ou Jaime Gama. Todos assinaram, convictamente, os meus projetos de revisão do art.º 15º, tal como, em outros quadrantes, Adriano Moreira (CDS), Natália Correia (PRD), António Mota e Luísa Amorim (PCP). E muitos mais.

Graças a eles, Portugal está, desde 2001, constitucionalmente pronto para a celebração de acordos bilaterais semelhantes ao que nos une ao Brasil com todos os outros países lusófonos, sob condição de reciprocidade. Nenhum deles deu ainda esse passo. Por isso, podemos reiterar a afirmação de que o Brasil é, para Portugal e os Portugueses, o menos estrangeiro de todos os países! E, para o sublinhar, recordo mais um exemplo de fraternidade brasileira que anda demasiado esquecido: em 1974/75, durante o dramático êxodo provocado pela descolonização, o Brasil foi o único país que acolheu os “retornados”, sem limitações, como se fossem seus nacionais – os velhos e os novos, os ricos e os pobres, os mais e menos qualificados.

3 – Após o esfriamento das relações oficiais que culminou com Bolsonaro, quando o Presidente Lula se propõe retomar as boas práticas e distingue Portugal, começando em Lisboa a sua primeira visita de Estado à Europa, não se esperava uma segunda “questão de reciprocidade”. Mas ela aí está, provocada pela visão estreitamente nacionalista da nossa “classe política”, com honrosas exceções.

O caso é este: o Brasil recebeu, em 2022, no Senado, o Presidente de Portugal e deu-lhe a palavra na sessão solene da celebração dos duzentos anos da sua independência, não o acantonando numa pequena cerimónia, realizada “a latere”, no dia anterior ou no dia seguinte. Agora, em 2023, Portugal, depois de pela voz de titulares dos mais altos cargos o ter aventado, rejeita, ruidosamente, o convite ao Presidente do Brasil para discursar nas simples e rotineiras comemorações do 49º ano da Revolução do 25 de Abril. É mau demais!  Não havia, claro, necessidade de apontar a intervenção do Presidente Lula às cerimónias do dia 25 de Abril, mas tendo isso acontecido, o recuo envergonha-nos.  E não faz sentido, porque é um dia de festa da democracia, que pode e deve ser partilhada sem barreiras, em especial no espaço da lusofonia, onde veio permitir a fundação de novos Estados e, também, a construção da CPLP. Aquilo a que vimos assistindo é politiquice caseira e mesquinha. Enquanto os capitães de Abril, como Vasco Lourenço, defendem, calorosamente, a presença do Presidente do Brasil nas comemorações (desejada, também, pelo Presidente Marcelo e pelo Governo), os políticos mais distantes do espírito da revolução são aqueles que se arvoram em paladinos da “pureza” das suas comemorações parlamentares. É o Portugal dos pequenitos…

Manuela Aguiar

Ex-vereadora da CM Espinho e secretária de Estado das Comunidades