As contas da nossa Rosário

A minha primeira reação quando li que, do pacote de medidas do Governo, constava o arrendamento forçado de casas devolutas também foi de torcer o nariz. Acho que é a palavra “forçado” que nos faz dizer logo que somos contra, que não nos podem forçar a nada. Mas a coisa, além de já estar prevista na lei, de ninguém estar agora a inventar nada, começa a fazer sentido aos poucos se paramos para pensar. Quer dizer, se todos nos puséssemos a pensar mais uns nos outros (já agora, se calhar devíamos ter adotado também a expressão “vacinação forçada” e talvez os números da Covid-19 tivessem sido menos penosos, talvez o direito à saúde pudesse ter sido mais efetivo).

Se eu tenho uma casa a que não dou uso, não a arrendo porquê?, sabendo a problemática de habitação do país, sabendo que há pessoas com necessidade de um teto, sabendo que ia ter uma fonte de rendimento (mesmo que não ao preço exorbitante que podemos considerar que o imóvel “merece”)? Isto não é uma pandemia de falta de habitação digna, mas talvez apenas não seja possível fazer semelhante comparação porque, claro, não é algo que afete toda a gente indiscriminadamente. É só os do costume – e os que começam a incrementar os números.

Claro que o Estado deve dar o exemplo e começar, pelo menos, por saber quantas casas tem, ele próprio, devolutas, para aumentar a oferta daquele mercado utópico, o dos preços acessíveis. Crente que sou, acredito que dará início ao processo. No entanto, até lá, “há tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”, já diz a máxima popular, por aí pixada em casas emparedadas. Até lá, há demasiadas situações dramáticas que precisam de uma resposta urgente. Não estamos a falar de luxo nenhum, estamos a falar de um teto justo. Estamos a falar de viver com dignidade, de pagar por uma casa com condições e, ainda assim, ter dinheiro para comer, para viver.

Se fossemos todos como a Rosário Olaio, dona de um prédio em Odivelas, onde gastou 300 mil euros para obras de reabilitação, e que agora é casa para 21 pessoas, seis delas crianças, não ficávamos, com certeza, mais pobres. Mais pessoas podiam ter acesso a casa e, na loucura, equacionar constituir família. Ou, mais importante, viver com dignidade.

Isto porque os estudantes, o juiz, a enfermeira, o militar ou o empregado de uma bomba de gasolina que moram no prédio da Rosário não pagam mais do que 550 euros. Por um quarto? Não. Por um T4! E isto num local onde o aluguer rondam os 1.049 euros mensais (barato. Em Espinho andaria nos 1.300)…porque “há quem pague”.

Se somos “forçados” a olhar para o mundo como a Rosário (que, como ela própria admite, tem o privilégio de ter este e outros prédios e escolher cobrar uma renda mais acessível) olha? Claro que não somos. Isso seria andar aqui a ser mais justo, a contribuir para a dignidade dos outros, quando podemos estar a olhar apenas para a parte lucrativa da equação.

Claro que o Estado deve dar o exemplo e começar, pelo menos, por saber quantas casas tem, ele próprio, devolutas, para aumentar a oferta daquele mercado utópico, o dos preços acessíveis.

Eu, que faço parte do grupo de pessoas que recebe notificações sobre casas em Espinho, tenho ouvido, muitas vezes, a sugestão de que compensa mais comprar porque depois, se quiser, consigo “facilmente pôr aquele T1 a alugar por 900 euros”. Até me causa arrepios, por mais que me venham com argumentos sobre o apetecível que a cidade é porque…tem mar. E lançar-me-ão o discurso de que “há quem pague”, que “são as leis da oferta e da procura” e mais justificações muito ao estilo liberal que comunga da proteção dos proprietários acima de tudo.

Pois…não. Os direito básicos – para não dizer que são direito humanos, porque é isso que o direito a habitação é, e a nossa assinatura está lá, enquanto membros das Nações Unidas, na Declaração Universal (o artigo é o 25), – acima de tudo. Então, mas eu ia dormir descansada, na minha outra propriedade (!) de privilegiada, a saber que estava a cobrar rendas ridículas – “porque há quem pague” – com o panorama que hoje se vive no país? Onde é preciso escolher entre comer ou tomar medicações, ter dois empregos para suportar o peso da carne, onde as famílias pobres gastam 40% do rendimento para ter um teto? E que não fosse essa a situação. Nunca mais andamos para a frente enquanto sociedade a este ritmo de empatia.

É vê-los a chorar na televisão porque lhes estão a “roubar as casas”. Ainda se lembram daqueles senhores muito ricos que se recusaram a ceder as casas – de férias! – no Zmar, em Odemira a migrantes que viviam em condições deploráveis, durante aqueles tempos medonhos dos surtos de covid, e que vieram para as televisões também a berrar muito pelos seus direitos? Que os têm, pois claro. Aliás, essas pessoas, como os proprietários com casas devolutas ou os que cobram valores obscenos para arrendar cubículos, têm todos os direitos deste mundo. Têm muitas coisas, aliás. Bom senso, noção e, até, coração, é que estarão mais escassos.

Nesta selva onde está a questão da habitação, as contas mais bem feitas são as da nossa Rosário.

PS. Uma palavra a quem acha que, em vez destas coisas ou dos altares-palco para o festival da igreja, “a menina” devia estar mais bem informada e preocupar-se com assuntos “mais importantes” como os milhões gastos na TAP: escolher falar de uma coisa, não implica concordar com outras. Os caracteres para escrever neste espaço é que são limitados. Ainda assim, prefiro ver dinheiro gasto em coisas que, pelo menos, têm alguma utilidade. Um beijo.

Claúdia Brandão

Colunista