Pausado só

Ansioso, acordei antes de o despertador tocar. Estava visto: adormecera em cima do erro informático que me impossibilitava de submeter a candidatura a um relevante programa para profissionais da cultura, uma das boias de salvação para um sector que ainda emerge da pandemia. Dormi sem descansar, acordei sem telemóvel nem galo.

Ainda mal saído da cama, com uma fatia de pão atirada para a torradeira pelo caminho, já estava de volta ao computador, certo de que a falha de sistema era coisa de domingo e que a semana começaria plena de prosperidade tecnológica. Resultado? O mesmo erro (ou pior, aquele nem-para-a-frente-nem-para-trás a que falta a coragem de se assumir como erro). Dois safanões imaginários ao aparelhómetro, um e-mail desesperado de socorro porque o prazo acaba ao fim do dia que acabou de começar.

O pão voa da torradeira e desaparece numa só trinca. Com aquela sequência de erro, safanões imaginários, e-mail, começava a aproximar-se a hora de deixar o carro na revisão e, ultimamente, não há jornada em que o trânsito coopere. Saio para a oficina, chego quase a tempo, fico o que parece uma eternidade na fila, trago o formidável veículo de substituição que tentarão vender-me daqui a umas semanas e preparo-me para enfrentar a besta ao regressar a casa e ao computador. A chave de casa ficou esquecida no carro que está no mecânico: Besta 3 – Ricardo 0.

Já com chave, mas sem tempo, a caminho do compromisso seguinte recebo o telefonema milagroso: “Quando o formulário não grava, mas também não dá erro, pode ser que seja disto. Se não for, pode ser daquilo. Se não for isto ou aquilo, mande mensagem para o help-desk, que eles devem responder em tempo útil.” Felizmente era daquilo, problema resolvido.

Corro para o treino, corro no treino, como a correr perto do treino; e sigo in extremis para a marcação no barbeiro. O bem que me sabe falar de música e família e vida com o meu amigo Jones passa demasiado rápido, porque o primeiro ensaio do dia já chama. São 14h55 e quase não me lembro de ter acordado sem despertador.

Ali atrás, durante o treino, conversava com o meu irmão sobre “mudanças de chip” quando passamos de uma realidade para outra. Dizia ele que tenta ir com tempo de adaptação ao que se segue, o que faz ainda mais sentido agora que penso e escrevo sobre isso. E dizia eu que raramente o consigo fazer, o que se torna ainda mais evidente quando termino o ensaio presencial com portugueses às 16h59 e estou a tentar fechar negócios à distância com escoceses às 17h01.

A maravilhosa genuinidade das gentes do bairro piscatório dá-me 10 minutos de fôlego e 1 dose de cafeína à mesa da padaria, antes da corrida que se segue: mais um ensaio, um passinho pequenino para o próximo álbum dos The Acoustic Foundation, e de volta à estrada para devolver o carro de substituição, recuperar o meu e regressar a casa. Só falta escrever a crónica para a Defesa de Espinho. “Só”.

Não sei até que horas vou estar à volta destas linhas, mas sei que num dia em que tive a sorte de fazer algumas das coisas de que mais gosto (adoro treinar com o meu irmão, adoro o meu amigo barbeiro, adoro o meu trabalho e mudar de chip sem dar por ela, adoro a padaria do bairro, adoro voltar para casa, adoro escrever) me falta o que devia ser óbvio: o momento para fazer… absolutamente nada.

Em 2022 fui a África pela primeira vez e logo a dobrar: Cabo Verde no início do ano, São Tomé e Príncipe no final. Se nos cabo-verdianos já admirara o “leve leve” com que descontraidamente encaram os dias, foi de um jovem são-tomense que recebi verdadeira pérola para não mais esquecer: em pleno Ilhéu das Rolas (assinalado por Gago Coutinho como “o centro do Mundo”), quando lhe perguntámos o que fazia quando não há turistas e o mar não permite ir para a escola, Didi respondeu muito naturalmente “fico pausado só”.

Sem televisão, sem saneamento, sem mais do que umas dezenas de nativos naquela ilha, mas com tanto do que aqui nos falta: a realização de nos conectarmos com o mundo, de ouvirmos o silêncio, de reduzirmos os estímulos a quase nada e “pausar só”. Aquilo que tantas vezes se considera “o fim do mundo”, porque “é longe e pobre e não tem nada”, afinal é “o centro do Mundo” e consegue desarmar-nos pela simplicidade com que nos ensina o que de tão nuclear ficou esquecido umas valentes gerações atrás.

Didi liga-se à Internet quando o acaso permite e sonha com o dia em que a namorada turista voltará às Rolas. Prometeu alugar aquela cabana que “até tem casa de banho” para a receber. Estuda quando pode, trabalha quando pode, aprende e conquista tudo o que pode. Não se dá facilmente à preguiça. Porque “pausado só” não é ser molenga e aquela namorada (ou outra que o mereça) nem sonha que o maior luxo que ele lhe oferecerá um dia é esse brilho que vai desaparecendo nos que se deixam absorver pelo correr da vida.

Ricardo Fidalgo

Músico