Sobre as efemérides em geral e uma em particular

1 –  Devo dizer que, em matéria de efemérides, fiz, há já algumas décadas, a minha “estrada de Damasco”. Era avessa a aceitar a imposição de uma data, por mais internacional ou mundial que fosse, como pretexto para solenidades ou festanças, excetuando aqueles rituais consagrados pela nossa tradição cristã ou laica.  Poucos: o Natal, a Páscoa, o Dia da Mãe e o Dia do Pai, o São João (do Porto), o Carnaval. O 10 de junho, o 5 de outubro, o 1 de dezembro não passavam de feriados, a gozar como um domingo qualquer. Ainda assim é para a maior parte dos portugueses. Quando muito, participam no programa do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades na cidade escolhida como sede da festa, e, no Dia 25 de Abril e da Liberdade, numa marcha organizada por partidos e ONG’s afins. Mais sorte têm, certamente, os “Santos Populares” porque as pessoas aderem, espontaneamente e em massa, às danças e folguedos de rua, como no Carnaval. E, a seu lado, no índice de popularidade, curiosamente, ganharam lugar efemérides de importação recente, como o “dia dos namorados”, (dia de São Valentim, que se tornou uma espécie de 4º santo popular, ultrapassando o São Martinho dos magustos), e, para o segmento infantil, o “Halloween”.

A meu ver, o que, hoje, mais contribui para desacreditar o calendário “oficial” das efemérides é, para além de uma excessiva proliferação, a caótica mescla de enfoques, com uma crescente invasão de modismos excêntricos ou fúteis e de datas de culto alheias – do mediático mundo anglo-saxónico, sobretudo.

No calendário católico, sendo a intenção orar, quotidianamente, era bom ir variando de “medianeiro”. Nos meus tempos escolares, recordo-me de fazer, sistematicamente, promessas aos santos dos dias de testes e exames… Porém, num mundo laico, parecia-me coisa para quem quer divertir-se a “festejar por festejar”, “à la carte”, num roteiro caleidoscópico. Na verdade, nenhum dos 365 dias do ano fica em branco, há, sempre, pelo menos um santo, mais ou menos esquecido do cristão comum, para suprir a lacuna. As doenças, à atenção dos hipocondríacos (como o Presidente Marcelo e eu) ocupam lugar de destaque nesta lista –  o dia mundial da obesidade, do rim, do transtorno bipolar, da incontinência urinária, da lepra, da tuberculose, da epilepsia, da artrite reumatoide, etc., etc. O setor alimentar apresenta-se, por exemplo, nos “dias mundiais” do hamburger, da comida picante, do chocolate, da nutella, da bolacha, ou de bebidas como o cocktail, o whisky, o vinho do Porto, o chá (a que acresce o “dia do chá gelado) e muitas outras. Para os amigos dos animais, (em que me conto), o calendário sinaliza numerosas espécies, discriminando, porém, algumas igualmente merecedoras de igual apoio ou visibilidade. Há: o “dia mundial” do rato, da baleia, do urso polar, do pinguim, das abelhas, do mosquito, do cão (mais o dia internacional do “cão guia”), do gato (com o “gato preto”, em jornada à parte…), do tigre, do elefante, etc.etc.. Estranhei a a ausência, do cão polícia ou do cão pastor, do lince ibérico, do canguru, do panda, da raposa … Às profissões, um generoso lote, se pode apontar o mesmo “senão”: há as privilegiadas e as olvidadas… Outro filão é o destaque de variadas atividades lúdicas, descontraídas: o dia internacional do fascínio das plantas, o dia sem dieta, os dias do riso, do sorriso, do beijo, dos namorados, do casamento (ao menos para casais felizes…), do piquenique, da preguiça, das palavras cruzadas, da piada etc.etc. Está nesta categoria, o mais universal de todos, “o dia das mentiras”, 1 de abril…

Num outro patamar, acedemos à Cultura, que poderemos exemplificar com os dias Mundiais da Criatividade e Inovação, da Poesia, da Arte, do Teatro, do Cinema, dos Museus, dos Monumentos – dias que, felizmente, vão entrando na agenda concreta de instituições públicas e da sociedade civil. E, a seu lado, crescem também as efemérides que se destinam ao aumento dos níveis de consciencialização para situações de injustiça, de preconceito, de exclusão (em que se podem enquadrar certas doenças ou certas profissões…) e de mobilização na luta pelos direitos humanos, contra a violação dos seus princípios e valores, e de apelo à solidariedade para uma vida melhor para todos e para o planeta.

2 – Foi na vida política e no voluntariado que me apercebi do enorme potencial de certas efemérides. O Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, tal como é celebrado na Diáspora, constituiu uma revelação! Lá fora, a sua celebração é, realmente, o momento de um patriotismo vibrante, voltado para a divulgação da nossa cultura, em grandes festivais de música, de dança, em cortejos alegóricos, banquetes, competições desportivas, exposições de arte, debates…  O propósito é o mesmo, mas os programas variam muito, com meios humanos e materiais, que vêm do movimento associativo, jornais, clubes, escolas, paróquias…  Estende-se, às vezes, por dias, semanas, ou por todo o mês de junho. As personalidades oficiais, da terra de origem ou de residência são ali convidadas, o anfitrião é a comunidade, em trabalho conjunto, esquecendo o que a divide ao longo do ano. Dois paradigmas de excelência eram Newark e Toronto, onde fui vezes sem conta, oficialmente, ou não, e onde o 10 de junho juntava dezenas, quando não centenas de milhares de pessoas, ultrapassando, no que respeita à participação popular, largamente, tudo quanto se fazia no país. Converti-me às comemorações: ao Dia Internacional da Mulher, ao Dia da Comunidades Luso-Brasileira, ao 25 de Abril, ao Dia da Europa, aos dias de aniversários das instituições, que me levaram, e ainda me levam a diversas cidades, países e continentes.

3 – Neste ano de 2023, depois de ter estado em Montreal, para o 20º Dia Internacional da Mulher organizado pelo Jornal “Luso Presse” (uma dupla efeméride, a da data em si mesma, e a do aniversário de uma iniciativa há duas décadas reiterada, absolutamente inédita na nossa emigração, ainda hoje pouco sensível a questões de igualdade de género). participei, na semana passada, no Dia Nacional do Mutualismo promovido pela União das Mutualidades Portuguesas (aqui bem perto, em Gaia, na sua fronteira com Espinho). Fui convidada para moderar uma conferência com quatro excecionais oradores, o Comissário Europeu Nicolas Schmit, os eurodeputados José Manuel Fernandes e Pedro Marques e o Vice-Presidente da ANM Pedro Ferreira, Presidente da CM de Torres Vedras.

Na sala, os cartazes lembravam-nos que, em Portugal, o mutualismo tem quase a mesma idade do país, pois a primeira confraria remonta a 1067, mas da sua longa viagem através dos tempos, falou-se quase só para mostrar como a fórmula da solidariedade e cooperação em que assenta se consegue adaptar às mais profundas transformações sociais e económicas. Na sessão inaugural, o Secretário de Estado Gabriel Bastos, e os líderes da União das Mutualidades Carla Silva e Luís Alberto Silva abriram, com precisão estratégica, horizontes ao debate. Seguiu-se a Conferência sobre “Mutualismo numa nova ordem mundial” e os intervenientes traçaram o quadro realista do fim de um longo ciclo de paz na Europa e de grande abertura à globalização, com a emergência de graves tensões internacionais, do ressurgir de blocos em confronto, de novos riscos, incertezas, desafios. A pandemia, a invasão da Ucrânia, uma guerra bárbara e sem solução à vista, o drama dos refugiados, a crise financeira, alargaram, sem dúvida, o fosso entre países ricos e países pobres – e entre as pessoas, também. E até a inovação e o progresso tecnológico contribuem para criar um mundo que avança vertiginosamente, deixando para trás o universo em expansão dos excluídos.

O cenário de pobreza, de desigualdade e de injustiça extremas, foi sempre o terreno em que o mutualismo germinou, entre a cultura do lucro capitalista e a limitada capacidade do Estado de dar resposta a tudo. É com o espírito mutualista de partilha, de entreajuda, de compreensão do outro, que se poderão moldar as transformações económicas, sociais e culturais, a que assistimos nas nossas sociedades e o relacionamento entre os Estado situados nas antípodas da prosperidade. A resiliência e a fraternidade com que a Europa faz seus os dramas da Ucrânia, é uma luz na escuridão.

 E é com esse espírito que o continente do bem-estar que somos, a Europa dos Direitos Sociais, e dentro dela, cada país, deve nortear o seu esforço de cooperação com outros continentes. Portugal, para além das relações a nível estatal, pode, com a sua multissecular experiência mutualista pode partilhá-la no espaço da lusofonia, a que pertence, como tão inteligentemente salientou, na parte final do programa do dia, o Prof Guilherme de Oliveira Martins.

Assim, a 12 de maio, no luminoso salão do Hotel Solverde, o mutualismo se repensou como é e como age, olhando o mundo e o futuro. Assim vale a pena comemorar uma efeméride!

Manuela Aguiar

Ex-vereadora da CM Espinho e secretária de Estado das Comunidades