Meter o nariz em morte alheia

O Presidente da República “promulgou o Decreto n.º 43/XV, da Assembleia da República, tal como está obrigado”. Ou seja, Marcelo Rebelo de Sousa tentou por todos os meios que a lei da eutanásia não avançasse, mas, felizmente, conseguiu-se que a religião do Presidente não metesse mais o bedelho na vida das pessoas. Neste caso, na morte. Se calhar, o que o senhor queria era ir aos hospitais dar abraços e beijinhos e dizer para as pessoas terem força e fé. Felizmente, demos um passo em frente na certeza de que o Presidente da República não é o país e de que não vamos permitir que a decisão última sobre direitos humanos seja baseada em devoções religiosas.

Acho muito importante que se tenha ido ao mais infimo pormenor na redação da lei para que não haja um única ponto, uma única ideia, uma só palavra dúbia. Nada contra o documento andar para trás e para a frente para se apresentar sem a mínima questão. Mas, senhor Presidente, senhores da Igreja Católica, senhores fervorosos da religião, este dia ia chegar. E fizemo-lo chegar com todo o rigor das palavras, mas, acima de tudo, com o simples respeito pelo outro. Houvesse um referendo – coisa que não vejo com bons olhos que isto de pôr a referendo matérias de direitos humanos (sim, está por lá qualquer coisa sobre a vida com dignidade) não me parece fazer o menor sentido – estaria lá o meu claro “sim”. Sim, não quero fazer parte de uma sociedade que obriga alguém a estar “amarrado” a uma cama de hospital, em sofrimento, certa de que não quer viver mais, só porque misturamos o Português e chamamos “matar” ao “permitir o direito de morrer”.

Calha que não há uma única linha na lei a obrigar-nos seja ao que for porque os outros têm a liberdade – e, agora, e com mais força, o direito – de escolher morrer como e quando querem. Porque querem. E, imagine-se, não somos obrigados a fazer uso da morte medicamente assistida caso nos vejamos exatamente na mesma situação que a pessoa que optou por ela. Diz lá algures que “a decisão do doente em qualquer fase do procedimento clínico de morte medicamente assistida é estritamente pessoal e indelegável”. Se a vossa religião não vos permite tal coisa, muito bem, todo o respeito do mundo, não a escolham. Acreditem que ninguém vos vai meter nada na veia se algum dia estiverem numa cama de hospital com uma doença sem cura.

E a lei é tão bem redigida e sensata que deixa, claramente, de fora os médicos que não queiram intervir no assunto. “Nenhum profissional de saúde pode ser obrigado a praticar ou ajudar ao ato de morte medicamente assistida de um doente se, por motivos clínicos, éticos ou de qualquer outra natureza, entender não o dever fazer, sendo assegurado o direito à objeção de consciência a todos os que o invoquem”. É que nem precisa de fundamentar. Não quer, não entra no processo.

Portanto, não voltemos a fazer da dignidade um crime. Não dói a ninguém, já viram? É basicamente como o casamento homossexual: permiti-lo a quem queira não vos obriga a casar com alguém do mesmo sexo que vocês. Só vos deixa de lado de uma decisão que não é vossa. Ás vezes tenho dificuldade em encontrar Português que explique o óbvio. Mas parece que, finalmente, o conseguimos pôr na legislação.

Na verdade, de forma muito simples, é apenas: deixem os outros viver ou morrer como querem e metam-se na vossa vida. E na vossa própria morte. Poder escolher como morrer, no limite, é a maior liberdade que podemos alcançar na vida. E há muito que lutámos por essa liberdade. A nossa e a dos outros. Que maravilha de lei, que nem sequer roça naquele argumento de que a minha liberdade acaba quando começa a do outro. A morte dos outros não tem nadinha a ver com vocês.

Lutámos muito – e durante demasiado tempo – por esta liberdade de morrer. Por causa de dois chumbos do Tribunal Constitucional e dois vetos políticos, não chegámos a tempo de permitir a dignidade a muitas pessoas que a desejavam. E isso devia entristecer-nos. Envergonhar-nos. Saber que não permitimos que se acabasse com o sofrimento de pessoas que o queriam, que o pediam, que no-lo imploraram porque só elas sabiam como se sentiam, só elas podiam saber se era ou não o momento. Porque, podendo, te-lo-iam feito elas próprias. Citando a deputado socialista, Isabel Moreira, “o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”.

Devíamos ficar felizes porque hoje sabemos que não vamos falhar a mais ninguém. E que sentimento bom este de tornar a vida de uma pessoa digna porque lhe permitimos – tão só – decidir morrer. Já imaginaram o que seria poderem escolher até o local onde a vossa morte vai acontecer? Não é bom poderem optar por morrer em casa, no vosso lugar de conforto, rodeados das vossas pessoas mais queridas? Um dia, se eu for essa pessoa, não me matem. Mas permitam-me que decida morrer.

Cláudia Brandão

Colunista