De origens humildes, começou a trabalhar aos 7 anos, dividindo a escola com a arte têxtil. Seguiu as pisadas do pai e, ainda em criança, foi pescador. Os três naufrágios que foi vítima não foram suficientes para o afastar de vez da arte. Mais tarde arranjaram-lhe um trabalho na Câmara Municipal, como varredor, onde esteve até se reformar. Moisés Lima é uma das figuras mais conhecidas do Bairro Piscatório e um dos símbolos vivos dos Leões Bairristas. A história de vida de uma personalidade, humilde e discreta, que vive o seu “Bairro” como poucos.

Desde que altura começou a haver uma relação entre si e o Bairro Piscatório?
Nasci em Espinho, mas pouco tempo depois fui morar para o Bairro Piscatório. O meu pai era pescador e a minha mãe era peixeira e, por isso, compraram lá uma casa.

Como foi a sua infância?
Fui para a escola e quando saía ia trabalhar para a indústria têxtil. Comecei aos 7 anos e trabalhei para o Heliodoro até aos 14 anos. Andava na escola durante a manhã e à tarde ia trabalhar na tapeçaria.

O que fazia nas tapeçarias?
Enchia as lançadeiras para os teares. Era a partir daí que se fabricavam as carpetes e os tapetes. Tudo era feito à mão e até os teares eram manuais. Isto era uma consequência da vida de pobre. Tínhamos de trabalhar desde muito cedo para colaborar nas despesas de casa.

E aos 14, lançou-se ao mar?
Praticamente. Já com 14 anos fui para o mar com o meu pai, trabalhar na pesca da sardinha. Entrei como moço, mas já andava no alto mar. No segundo ano fui promovido a camarada. Andei na pesca até atingir a idade de ir para a tropa.

Como era a vida de pescador?
Era uma vida ingrata, provavelmente a mais difícil que existe! Andava nas traineiras e cheguei a naufragar. Tínhamos um compromisso [contrato] com o mestre durante um ano onde podíamos permanecer esse tempo ou sair. Andávamos em vários barcos e a vida era muito dura. Não tínhamos horas para fazer uma refeição nem para dormir. Adormeci imensas vezes em cima de um cabaz, enquanto esperava a altura do barco lançar a rede ao mar. Só aqueles que tinham mais responsabilidades no barco é que tinham de se manter acordados. Na parte final do meu percurso como pescador, cheguei a ter mais responsabilidades porque estava na casa do leme como operador de sondas. Estava sempre atento e à procura dos locais com mais peixe.
Trabalhávamos quase de sol a sol e descarregávamos o peixe descalços, na lingueta, em Matosinhos, porque ainda não havia um cais. Éramos dois camaradas e transportávamos quatro a cinco cabazes de peixe. A rede era alada à mão para dentro do barco. Hoje isso já não acontece e tudo é feito através de máquinas, gruas e espalhadores. Naquele tempo era o chamado trabalho escravo.

Como aconteceu o naufrágio?
Das tragédias e das coisas que não gosto não memorizo datas. Nunca quis registar estes casos negros da minha vida. Foram coisas que deixaram profundas marcas, em momentos extremamente difíceis.
Estávamos a trabalhar em alto mar, a cerca de 40 quilómetros da costa de Espinho. O dia estava muito mau, com vento forte e o mar estava muito agitado. Isto aconteceu a poucos dias do Natal. Nessa altura estava a trabalhar com o mestre que era um dos campeões da pesca da sardinha, o Rui Orelhas que só gostava de ver o barco cheio de pescado.
Todos os barcos regressaram à doca, exceto o nosso. Já tínhamos imenso peixe, mas o mestre quis mais um lanço. Estou convencido de que não havia compradores para tanto peixe porque estávamos muito próximo do Natal. O mar ficou mais agitado e o barco batia com força nas vagas. Era assustador. Embrulhei-me num cobertor e fui para os beliches do barco que ficavam no rancho, por debaixo do convés. Fiquei num beliche na proa e, por isso, sentia o impacto com as ondas.

E o pior veio a seguir?!
De um momento para o outro o barco saltou com uma onda e encheu-se de água no convés. Uma das bordas ficou debaixo de água. A água não saía porque a rede de pesca tapou os buracos de escoamento. O barco ficou adornado [inclinado para um dos lados]. Não havia mais nenhuma embarcação para nos ajudar. A maior parte dos homens meteu-se na chalandra [barco pequeno que faz o cerco com a rede]. Pensei que, se ia morrer, mais valia ficar na traineira. Fiquei com o mestre e mais dois ou três camaradas. Estávamos descalços e gritávamos por socorro. Pedíamos a Deus que nos ajudasse. No entanto, o homem que ia ao leme, o Tino Rato, agarrou o microfone do rádio e pediu ajuda. O mestre Zé Caravela, que era fadista, captou o SOS e através do sonar e radar, chegou a nós. Quando vi o barco comecei a ver uma luz ao fundo do túnel.
Um dos camaradas, de repente, lembrou-se de cortar uma corda da rede e o barco voltou a estabilizar. Uns camaradas vieram no barco Mar Branco e os restantes foram na nossa embarcação, o Cação.
Quando chegámos a Matosinhos todos estavam surpreendidos porque tinha corrido a notícia que tínhamos morrido.
Quando vinha a caminho de casa, um dos meus filhos veio abraçar-me. Foi um momento muito emocionante e que jamais irei esquecer.

Depois deste susto voltou ao mar?
Continuei a trabalhar no mar. Já tinha tido um naufrágio antes e o barco foi ao fundo. Não percebi muito bem esse naufrágio. Nessa altura estava muito próximo de nós um barco para nos levar. O susto não foi grande nem nos molhámos. Foi passar de um barco para o outro.
Uma outra vez, a sair da Barra de Aveiro, partiram-se duas tábuas da proa do barco e começou a meter água por todos os lados. Voltámos para trás e só tivemos tempo de enfiar o barco por um pinhal que estava numa das margens da Ria de Aveiro.

Passavam muito tempo dentro dos barcos de pesca?
Passávamos muitas horas. Quando comecei a trabalhar na pesca não tínhamos hora de sair nem de chegar. Cartávamos o peixe ao bordão [com um pau para apoio] por cima de pedras, descalços. Não conseguíamos secar a roupa de um dia para o outro e vestíamo-la novamente no dia seguinte. Mais tarde, quando apareceram outras tecnologias para os barcos e para a pesca, começámos a ter horas para partir. Às vezes era às 22 horas, ou à meia-noite. Regressávamos a casa à sexta-feira à tarde ou à noite e no domingo regressávamos à pesca. Estava com os meus filhos ao sábado e ao domingo de manhã. À tarde, no domingo, tinha de descansar para voltar ao mar à noite. Quando regressava a casa à sexta-feira perguntava à minha mulher pelas chaves dos Leões Bairristas para preparar a sede e o bar para atender clientes.

Artigo completo na edição de 26 de outubro de 2023. Assine o jornal que lhe mostra Espinho por dentro por apenas 32,5€.