1 – Andamos numa angústia quotidiana, comparável à que nos afligiu durante o genocídio indonésio em Timor Leste, em especial, depois do massacre do cemitério de Santa Cruz, registado em imagens que chocaram o mundo e reequacionaram o destino de uma Nação.
É domingo em Mariupol e os cadáveres juncam as ruas, as casas ardem, não há água, nem comida, nem luz. Não sabemos se na próxima 5ª feira, quando estivermos a ler este jornal, o mesmo se poderá dizer de Odessa ou de Kiev… É o inferno, visto por dentro, minuto a minuto, como nunca antes visionáramos nos media e multimédia. “Rios de sangue e de lágrimas”, nas impressionantes palavras do Papa Francisco. Já mais de dois milhões de refugiados atravessaram as fronteiras abertas de par em par pela Polónia, Hungria, Roménia, Moldávia, e pela Europa inteira. Aqui, no extremo oeste, mostramos disponibilidade igual – uma excelente e prestigiada comunidade de imigrantes aproximou-nos da Ucrânia, desde o fim do século passado. O Governo português tornou-se, nesta parte da Europa, pioneiro ao abater barreiras burocráticas e ao não pôr limites ao acolhimento de refugiados. E são muitas as autarquias que preparam, no terreno, a receção das famílias, e colaboram na recolha e transporte de bens essenciais para as vítimas da guerra que se encontram ainda no país ou nas fronteiras do leste. Espinho está na vanguarda dessa campanha, numa colaboração entre a Câmara, a Paróquia, os Bombeiros e a Cruz Vermelha. Nas ruas, os portugueses protestam ao lado dos imigrantes ucranianos, mobilizam-se numa infinidade de gestos simbólicos e aderem a iniciativas de coletividades locais, associações cívicas e humanitárias – no meu círculo familiar, até as crianças quiseram participar e acompanharam os pais nas manifestações do Porto, algumas com a idade que eu tinha, quando os tanques russos entraram em Budapeste…
Os Estados democráticos do Ocidente avançaram com sanções extraordinárias, que isolaram a Rússia e a transformaram de um dia (o dia da invasão), para o outro (o dia seguinte) num Estado pária (muito embora falte ainda, a maior de todas, o boicote total ao petróleo e ao gás russo…).
É uma constatação que tem tanto de novo e surpreendente, como a monstruosa aventura imperialista de subjugar, pelas armas, uma pacífica Nação independente.
A Europa está muito perto da fonte do perigo, e, em particular na zona de fronteira, conheceu bem demais o “czarismo soviético” dominador
2 – Nos canais noticiosos, a escolha é entre as imagens que mais parecem um apocalipse de terror, filmado em Hollywood, do que terror na vida real, e as que mostram os corredores de fuga: um êxodo de proporções bíblicas, protagonizado por gente vestida como nós, a contar os seus dramas pessoais num inglês, que falam como nós… São quase somente mulheres, com os filhos pequenos pela mão, e, pormenor comovente, em muitos casos, também o cão ou o gato, que trazem consigo, em vez de uma mala com bens materiais. Para trás deixaram tudo, a vida de família, de trabalho, de convívio, a vida fundamentalmente igual à nossa, que tinham na semana anterior… E, ao olhar os que ficam ou os que partem, com a mesma coragem, há uma pergunta que nos ocorre, constantemente: e se fossemos nós?
Países que ergueram muros de arame farpado contra os refugiados do Médio Oriente, igualmente sobreviventes de conflitos pavorosos, ou os aprisionaram em miseráveis campos de internamento, estão hoje a receber generosa e exemplarmente todos os que escapam à barbárie russa. Temos tendência a ver neste fenómeno a pura emergência de uma fraternidade europeia, que, há muito, parecia perdida. Será, em parte, uma verdade, que nos é grato descobrir (e talvez ajude a uma melhor compreensão outras vítimas inocentes de conflagrações, que vai haver mais tarde), mas é muito mais do que isso. Uma agressão desta natureza, perpetrada por uma potência nuclear, que está nas mãos de um tirano omnipotente, cuja crueldade o situa nos patamares do estalinismo e cuja sanidade é discutível, representa uma ameaça civilizacional – e, consequentemente, suscita reação planetária. A Europa está muito perto da fonte do perigo, e, em particular na zona de fronteira, conheceu bem demais o “czarismo soviético” dominador, e, a uma maior distância temporal, a intimidatória vizinhança do czarismo propriamente dito…
E assim Putin está a mudar o mundo, mas não em conformidade com os seus planos originais. Quis destruir a Ucrânia e recriou-a com uma alma heróica, mesmo que venha a derrotá-la, conjunturalmente, pela força bruta. Quis dividir e subverter a UE, e provocou o efeito contrário, promovendo a unidade europeia que tardava. Quis agitar o fantasma da NATO e ressuscitou uma velha aliança, classificada como obsoleta a anacrónica e deu-lhe uma razão de ser e um futuro. Essa foi a primeira batalha que perdeu. A segunda será a da frente económica. Os milhares de oligarcas que o sustentam, nas mais aviltantes formas de capitalismo, talvez consigam contornar algumas das sanções, habilidosamente, mas a Rússia não. O seu povo está condenado à miséria, por muito, muito tempo, talvez por gerações. A Ucrânia há-de levantar-se primeiro!
3 – A Europa acreditou, piamente, na racionalidade de Putin. Porém, ao ter pactuado com ele, fechando os olhos a desmandos e a crimes, ao ter-se submetido à sua dependência no campo energético, ofereceu-lhe uma aparência de não haver limites para o que estava disposta a suportar. Pela inércia, involuntária e leviana, iludiu o bárbaro, no seu jogo de ambição desmedida, sempre feito de frio cálculo… De facto, a invasão da Ucrânia não começou há dias, mas há oito anos, em 2014! Começou pela anexação da Crimeia, avançou por Donetsk, pela região de Donbass, deixando um rasto de milhares de mortos, sem que norte-americanos e europeus tomassem, atempadamente, as medidas aplicadas no presente. Nesse contexto, se preparou Putin para ocupar o resto da Ucrânia, em fevereiro de 2022, esperando uma insignificante resistência interna e externa. Enganou-se – levado pela experiência do passado recente – e viu-se confrontado com uma gigantesca onda de reação, no quadro das relações internacionais, assim como no teatro de guerra. A possível vitória militar sobre a Ucrânia, como ele já aprendeu, não se fará sem a derrocada financeira da Rússia. E um governo fantoche em Kiev, será derrubado, a prazo, quando ele morrer ou talvez antes… O maior erro de Putin é pensar, se é que pensa, que a identidade ucraniana não existe. Existe e é europeia. Basta ver onde procuram refúgio mais de 95% dos ucranianos: não é nos braços da Rússia, é no Ocidente!
Na UE, em Portugal, um pouco por todo o lado, vamos também pagar um preço elevado para resistir à intimidação nuclear de Putin, e pôr termo à dependência energética da Rússia. E, também, para acabar com a excessiva dependência militar da América – de Biden, hoje, de um eventual segundo Trump, amanhã – erguendo o braço europeu da NATO. Não para a guerra, mas para a paz. É o preço a pagar pelo valor da Liberdade.
Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado / Ex-vereadora CM Espinho