O direito ao trabalho

Rúben Amorim é o treinador que vai à frente no campeonato e que, a confirmar-se, conseguirá o feito raro de ser campeão pelo Sporting apesar de os principais rivais terem plantéis mais valiosos. Ganhou duas vezes seguidas a Taça da Liga e tem feito um trabalho notável por uma equipa que, no ano passado, ficou a quase tantos pontos do primeiro classificado como das equipas que desceram. Qualquer Associação de Treinadores ficaria orgulhosa de contar com um quadro assim.

No entanto, a Associação Nacional de Treinadores de Futebol, não só não se orgulha de ter um quadro destes, como tem travado uma guerra legal contra ele, alegando que não está qualificado para treinar equipas de futebol. Tudo isto porque Rúben Amorim, apesar do seu sucesso, apesar de ter jogado ao mais alto nível, apesar de ter sido treinado por alguns dos melhores do mundo e ter sido internacional pela seleção A, ainda não conseguiu fazer todos os níveis do curso de treinador. Esse curso de treinador exige bastantes horas e tem poucas vagas. No último curso, o diretor pedagógico foi Arnaldo Cunha cuja carreira de treinador de clubes teve o seu auge quando treinou o Alverca em 1995-96, tendo atingido 12 vitórias em 34 jogos e acabado num honroso 13º lugar na 2ª Divisão de Honra. É esta pessoa que a Associação Nacional de Treinadores julga que deverá ensinar Ruben Amorim a treinar equipas de futebol. A Associação Nacional de Treinadores de Futebol considera tão importante que Ruben Amorim receba os conhecimentos transmitidos por Arnaldo Cunha que exige que ele seja suspenso, entre 1 e 6 anos, pelo crime de dar instruções a partir do banco sem nunca ter beneficiado dos conhecimentos do professor Arnaldo Cunha.

Há circunstâncias em que faz sentido restringir o acesso a uma profissão e circunstâncias em que não faz. É consensual que uma pessoa não possa exercer medicina sem ter o curso. No entanto, poucos concordariam que um empregado de limpeza só possa exercer com determinado curso. Esta diferença não se prende com a complexidade da tarefa. Muitos programadores informáticos não são licenciados em engenharia informática. Alguns dos empreendedores com mais sucesso na área das tecnologias nunca acabaram sequer um curso universitário.

Em que circunstâncias então faz sentido exigir certificação para o exercício de uma profissão? Quando se cumprem três critérios.

  1. O curso que oferece a certificação contribuir para que o profissional esteja mais bem preparado. Este não é um critério particularmente rígido porque mesmo para profissões pouco exigente, algum tipo de formação prepara sempre a pessoa para o seu exercício.
  2. Os danos de exercer sem o curso poderem ser graves para quem usufrui do serviço. Este critério já elimina algumas profissões. Por exemplo, empregado de mesa, guia turístico ou actor. Embora ter o curso possa preparar melhor qualquer um destes profissionais, o risco para quem usufrui dos serviços de ser servido por alguém sem curso é muito reduzido.
  3. Existir assimetria de informação entre prestador e consumidor. Ou seja, o consumidor não ter nenhuma possibilidade minimamente conveniente de saber se o prestador é certificado ou não. Isto aplica-se a quase todos os profissionais que prestam serviços a um público alargado. Nenhuma pessoa quer entrar num consultório médico e, antes de cada consulta, verificar que tipo de formação e especialização o médico teve. Muitas pessoas nem sequer teriam capacidade para isso. O mesmo se aplicaria a cozinheiros ou empregados de mesa, não fossem já excluídos pelo critério anterior. Quando, pelo contrário, um profissional tem poucos consumidores e esses consumidores beneficiam do serviço por um longo período de tempo normalmente esta assimetria de informação não existe. Uma empresa que contrate um administrador certamente saberá que curso ele tem (ou não tem), se for relevante para o exercício do seu cargo. Se a escolha for feita de forma livre e informada, não há nenhum motivo para que um consumidor não possa preferir um profissional sem certificação.

Destes critérios, apenas o primeiro e o segundo podem ser aplicados ao treinador de futebol, e mesmo assim seriam bastante discutíveis. O Rúben Amorim dificilmente aprenderia muito num curso de treinador e as consequências de não ter o curso dificilmente serão muito grandes (há toda uma história de treinadores sem curso, sem que se conheça nenhum caso de dano grave diretamente ligado à falta de curso). No entanto, é no terceiro critério que a falha é mais flagrante. O Sporting Clube de Portugal sabia que Rúben Amorim não tinha curso, os jogadores sabem que ele não tem curso e até os adeptos sabem que ele não tem curso. Houve uma opção consciente e informada em optar por um treinador sem o curso. Ao contrário do que aconteceria com um médico aldrabão, aqui a escolha é livre e informada. Os consumidores dos serviços de Rúben Amorim sabem perfeitamente que ele não tem curso e aquilo que se aprende nesses cursos e mesmo assim acharam que ele seria qualificado para o cargo em questão.

Porque é que então, a corporação dos treinadores de futebol insiste tanto em punir treinadores que treinem sem a certificação quando são os próprios clubes que os contratam a não se importarem com isso? A resposta é simples: no futebol, como em muitos outros sectores, a certificação também serve o propósito de impedir a concorrência. Ao impor a certificação, sempre muito limitada e cara, a Associação Nacional de Treinadores de Futebol está a limitar a entrada no mercado de novos treinadores de futebol, mais capazes, inovadores, que possam vir a fazer concorrência aos treinadores mais medíocres (mesmo que com curso).

Aquilo que acontece com Rúben Amorim no futebol, acontece com outros profissionais em muitas outras áreas. Um sintoma de um país onde os medíocres ainda acham que a lei é um mecanismo aceitável para se protegerem da concorrência dos que são melhores que eles.

Carlos Guimarães Pinto
Economista / Professor Universitário