Uma questão de género, de protocolo e de boas maneiras (o “sofagate”)

1 – O chamado “sofagate” provocou uma tempestade política perfeita. Envolveu, como é universalmente sabido, dois homens e uma mulher – um triângulo formado por Erdogan, muçulmano retrógrado, que, a partir de Ankara, lidera hordas de assalto aos direitos das mulheres (e a outros direitos democráticos), Charles Michel, o presidente do Conselho Europeu, ex-primeiro ministro belga, que a ele se aliou contra a senhora ali presente, e por esta, Ursula von der Leyen, a primeira mulher a presidir à Comissão Europeia – uma conservadora do PPE, vinda do governo de Angela Merkel.

Dois pormenores relevantes: a presidente da Comissão Europeia e o presidente do Conselho Europeu, têm, precisamente, a mesma categoria protocolar; em visitas anteriores, quando os dois altos dirigentes da UE eram do sexo masculino, sempre houve, na sala, três vistosos cadeirões dourados para os três presidentes da cimeira, e dois modestos sofás paralelos para figuras menores, discretos acompanhantes. Entre abandonar a reunião, pela porta grande ou remeter-se a um lugarzinho secundário, ela escolheu acantonar-se num sofá, que, assim, entrou para a História…

2 – O protocolo lida, em princípio, com a hierarquização institucional – ou, como no caso de Ankara, com a paridade. Por isso, a infração às suas regras ofende, em primeira linha, as instituições, não tanto os seus representantes. Todavia, numa conjuntura marcada pelo rompimento turco da Convenção que protege as mulheres da violência – justamente vista como um convite de Erdogan à violência contra as mulheres do seu país – a grosseira discriminação da Dr.ª Von der Leyen assumiu um caráter eminentemente político, misógino e pessoal. Lembro-me, por exemplo, de em muitas ocasiões, quando representava o presidente da Assembleia da República, em cerimónias oficiais, ter acompanhado o Presidente Soares, no seu carro oficial (em vez de seguir sozinha no meu) e de ele me dar, sistematicamente, a sua direita.

Recentemente, por altura do falecimento do Príncipe Filipe, o Príncipe Carlos desempenhou o seu papel, de forma, a todos os títulos, paradigmática. Uma admirável exceção à regra de deixar na retaguarda as consortes femininas, como a que eu mesma assisti, no hemiciclo do Conselho da Europa, teve por protagonista o Rei Hussein da Jordânia. São alguns bons exemplos.

numa conjuntura marcada pelo rompimento turco da Convenção que protege as mulheres da violência, a grosseira discriminação da Dr.ª Von der Leyen assumiu um caráter político

3 – Andou bem Ursula von der Leyen, quando suportou ser destratada pelo protocolo turco? Talvez sim, talvez não… Para avaliar a sua atitude, seria imprescindível saber exatamente o que estava a fazer ali, em dueto com a outra sumidade europeia. Falo por experiência própria, porque já me vi numa situação, de algum modo, semelhante…Poderia, até, solidarizar-me com ela, proclamando “Me too” (note-se, no domínio do protocolo e da etiqueta, não do assédio sexual, que desse, nunca fui vítima, graças a Deus!)…

O incidente de que fui vítima aconteceu na capital da Austrália, no ano de 1996. Ali me encontrava como deputada eleita pela emigração, a visitar comunidades portuguesas. Era embaixador um excelente e amável diplomata de origem goesa, Zózimo da Silva, e estava na ordem do dia a problemática dos refugiados timorenses, recém-chegados a Darwin, e espalhados pelo país, às dezenas de milhares.

Português de origens orientais, o Embaixador tinha uma especial sensibilidade para os dramas humanos de uma descolonização, que foi, de todas, a mais sangrenta, (não às mãos do colonizador multissecular, mas do invasor indonésio, reconhecido, como nova potência colonial pelos EUA, pela Austrália e outros países ditos democráticos, que, assim, pactuavam com o genocídio dos resistentes timorenses). Transmitiu-me o Dr. Zózimo, um convite do ministro do Interior, que insistia em reunir comigo sobre um bizarro plano destinado a reencaminhar para Portugal todos os refugiados, a pretexto de lhes ser, por nós, reconhecida (se a reclamassem…) a nacionalidade portuguesa. O ministro chamava-se Ruddock e era um conhecido líder religioso – se não fanático, pelo menos devoto cristão não católico. Sempre pronta a bater-me por este povo irmão (tendo sido já peticionária no Comité de Descolonização da ONU, a pedido de uma organização timorense) aceitei prontamente o repto.

O embaixador, que mantinha com Ruddock um relacionamento tempestuoso, colocou-me a alternativa de ir, ou não, comigo. Ambos concluímos que a sua presença não facilitaria o encontro, para a qual avancei com o n.º 2 da Embaixada. Entrei nasala e deparei com o Ministro, ostensivamente sentado, “alapado” na sua cadeira! Nunca tal me sucedera!… Senti a afronta, mais ainda por ser mulher, embora convencida de que aquele australiano, “WASP” e rude, ao contrário do déspota turco, faria precisamente o mesmo a um deputado homem… (do mal, o menos!). Em qualquer caso, grande foi a tentação de virar costas e bater com a porta…Por segundos hesitei, mas logo senti que era preciso ficar e dizer o que queria dizer sobre Timor-Leste… e dizê-lo com uma raiva fria e controlada. Aparentemente, Ruddock esperava tudo menos o tipo de agressividade (ainda por cima, feminina). com que encetei a conversa. O meu fio da argumentação não diferia do do embaixador Zózimo: Portugal, de braços abertos, receberia todos os timorenses, que estavam na Austrália, todos sem exceção, mas por sua vontade, não por ditames de um governo estrangeiro. E a nacionalidade portuguesa não lhes era imposta, antes incondicionalmente atribuída, a pedido.

Durante mais de meia hora, dissecamos factos históricos e conceitos jurídicos, e a cada minuto decorrido, eu sentia que ganhava pontos, porque a razão e a moral estavam do meu lado – do lado timorense. Não sei, ao certo, quando o ambiente pesado cedeu a uma inesperada cordialidade, quando eu passei a apelar aos valores cristãos do cidadão Ruddock. Lembro-me de ter saído, sorridente, a exortar o devoto governante a “ganhar o céu, ajudando os timorenses”!…. Ele, não menos sorridente, levantou-se do seu assento e acompanhou-me à saída, cortesmente.

Uma história com “happy end”, sem contornos sexistas, em que os pecados protocolares foram relevados e as boas maneiras acabaram por prevalecer. E, mais importante ainda, os direitos dos refugiados, também. Tudo, afinal, nas antípodas do “sofagate”, enão só geograficamente!

Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado e Vereadora da CME