A pandemia no espelho do futebol

Portugal começou bem e acabou mal o “Euro” – eliminado no “mata-mata” (como dizia Scolari, o homem que deixou uma herança de bandeiras verde-rubras nas janelas e a má memória da perseguição a Vítor Baía). Desta vez perdemos para a Bélgica, que só mesmo no “ranking” é a nº 1, tendo na partida de Sevilha posto em prática esquemas táticos que mais se esperariam de Fernando Santos.

Noutra perspetiva, em termos de “jogo jogado”, a equipa começou mal e acabou bem. Na última oportunidade mostramos do que somos capazes, merecíamos ganhar, ir em frente para os quartos de final. O futebol é isto: um desporto pontuado por momentos de sorte e de azar, de resultado sempre incerto, como a própria vida humana. O fator “suspense” faz parte da sua magia.

A perda do cetro europeu deixou o país de luto e de regresso à normalidade, ou seja, a falar da 4ª vaga da Covid, da variante nepalesa, da cerca sanitária de Lisboa em regime de “part-time”, dos desastres de Eduardo Cabrita, do certificado digital para acesso a restaurantes, dos ritmos da vacinação e do pandemónio de filas de espera – dispensável desorganização civil sob a batuta de um ilustre militar.

Já pertencem ao passado os dias de delírio coletivo, a ver na TV o futebol, nosso e alheio, em estádios repletos de público, de cor e de abraços. Já estamos caídos no reino português da burocracia paralisante, que tudo proíbe ou condiciona, sem explicar porquê. Tal como Sísifo, condenado eternamente a andar acima e abaixo do caminho da montanha, carregando o seu fardo de pedra, nós, num sobe e desce permanente de horários do comércio e da restauração, e do “ranking sanitário” da nossa cidade, confinamos e desconfinamos, enquanto cresce o número de descrentes nestes castigos de deuses menores –, sobretudo entre a juventude não vacinada, não mascarada (como diria Ferro Rodrigues), nem fisicamente distanciada.

Há dias, passava eu no Largo da Graciosa e ouvi um fragmento de conversa de três adolescentes sobre este tema do quotidiano espinhense. Um deles bradava, desconsoladamente: “Estou farto da Covid-19. Antes queria um apocalipse zombie!”. A pressa que levava não me permitiu ouvir o resto do lamento, que teria valido a pena. Ali estava quem exprimia, numa síntese lapidar, o sentir de uma geração inteira…

2 – O futebol tem sido, desde o início deste interregno “zombie” na história da Humanidade, o espelho fiel de erros, incoerência e arbitrariedade de quem manda na gestão da crise. De entre todos os domínios em que podemos, a meio do segundo ano da pandemia, traçar um balanço negro, este é certamente o “primus inter pares”. Logo na primeira avaliação de risco comportamental, recebeu nota máxima, com o consequente encerramento ao público de todos os recintos desportivos (incluindo a pais de meninos pequenos, em jogos de formação!). Assim se demonizava todo e qualquer adepto, dado como incapaz de controlar paixões clubistas ou nacionalistas. A mesma pessoa que assiste civilizadamente a um concerto ou a um cinema, vira selvagem mal se senta num estádio, segundo esta escola de pensamento. “Quod erat demonstrandum”… Para calar as raras vozes que se levantavam contra o fundamentalismo da medida, os poderes públicos promoveram dois ou três ensaios de abertura ao público, em emocionantes jogos internacionais, esperando um dilúvio de desordem e de caos. Porém, a realidade desmentiu os preconceitos, ancorada na enorme experiência organizativa dos clubes e no caráter ordeiro da maioria das assistências. Tudo correu às mil maravilhas, no acesso, no interior e na saída dos estádios, no Porto e em Lisboa, à lonjura dos Açores!

Foi preciso esperarmos vários meses, até maio e junho deste Ano II pandémico, para termos a prova de que, afinal, os desequilibrados, os irracionais, os “loucos” do futebol” não são os cidadãos anónimos, mas os próprios detentores de altos cargos do Poder (os autores, materiais ou morais, de leis e regras e minudências absurdas, em que Portugal bate recordes). A desgraça que nos relegou da linha da frente para a cauda da Europa é filha dos monumentais festejos de rua de um campeonato nacional, (todo ele disputado em estádio vazio…), com o “nihil obstat” da DGS e da Câmara de Lisboa. Seguiu-se a polémica autorização para a disputa da final da Champions no Estádio do Dragão, enfim aberto, mas só ao público britânico (desta vez sem funestas consequências, dado o prudente distanciamento físico a que a população do Porto se manteve dos forasteiros). Logo depois, as mais altas figuras do Estado acompanharam o desenrolar do “Euro”, febrilmente, tomados por ímpetos juvenis, e, a partir de uma Lisboa em “estado de cerca parcial”, incitaram à deslocação em massa de lisboetas e dos restantes portugueses ao estádio de Sevilha, outra cidade situada em “zona vermelha”.

Foi preciso esperarmos vários meses, até maio e junho deste Ano II pandémico, para termos a prova de que, afinal, os desequilibrados, os irracionais, os “loucos” do futebol” não são os cidadãos anónimos, mas os próprios detentores de altos cargos do Poder (os autores, materiais ou morais, de leis e regras e minudências absurdas, em que Portugal bate recordes).

Este encadeamento de incidentes com o futebol como pano de fundo teve, contudo, muito pouco a ver com a gente do futebol e com os interesses do desporto. Tratou-se, em todos os casos, de mero aproveitamento do futebol pelos políticos que nos governam. Quando falam de fãs emotivos e descontrolados, põem um cachecol ao pescoço e olham-se ao espelho…

3 – Quanto à seleção, apenas um diagnóstico breve: sofre de dois males cumulativos: a usura (lenta…) do poder absoluto de Fernando Santos e o endeusamento de Ronaldo, o melhor jogador do mundo por definição, pouco importando que esteja em boa ou em má forma.

A idolatria de Ronaldo não ajuda o coletivo, sem culpas para o ídolo, vítima e não vilão, (o fenómeno que, aos 36 anos, dá nome a um museu, a um aeroporto internacional e é, nas redes sociais, o rosto mais conhecido do seu país). A lenda não vai envelhecer, o homem sim (a menos que Pepe lhe desvende o segredo da eterna juventude…). E as seleções jovens mostram, constantemente, num futebol de luxo e de ataque, que não nos faltam heróis em lista de espera…”

Santos fez, ao chegar, um saudável contraste com dois antecessores enclausurados nos seus enormes “egos”, que montavam “equipas de autor” (Queiroz e Bento). Chamou os proscritos de Bento e com eles e outros montou um conjunto em que vedetas e operários, de várias gerações, se uniram harmoniosamente. Foi bonito de ver e, sem produzir maravilhas no relvado – exceto a espaços, com a genialidade de um ou outro predestinado a grandes cometimentos – atingiu o topo da Europa, no “Euro” de 2016, e, de seguida, na primeira Taça das Nações. Prestigiado e adulado, a torto e a direito, também Santos, anos volvidos, converte a seleção nacional no “clube do Fernando”. Abundam os nomes com lugares cativos, mesmo quando os jogadores dentro dos nomes estão esgotados. Viu-se…

Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado e Vereadora da CME