Vinhos, livros e o nosso mar

Tal como na crónica do mês passado, permitam-me esta semana voltar a falar-vos de vinho, um bem cultural (e um produto-bandeira do nosso país) que é muito mais do que uma mera bebida – mesmo que seja uma bebida única e extraordinária se consumida com a devida moderação.

Quando se fala de livros e de leitura, existe algum preconceito em relação à literatura de cordel, à banda desenhada ou aos livros policiais. Há mesmo quem esteja convencido que um leitor genuíno teve de subir a pulso “A Montanha Mágica” do Thomas Mann. Ou que os hábitos de leitura se conquistam necessariamente nas profundezas do “Inferno” de Dante. Ou ainda através da “Guerra e Paz” feita pelo Tolstoi.

Ninguém de bom senso põe em causa estes títulos maiores da história da literatura universal. Mas as escadas têm degraus por alguma razão. E é bom poder subi-los gradualmente, de modo a retirarmos todo o prazer (e ensinamentos) do percurso ascencional que a vida nos vai proporcionando.

Se é assim com os livros, é assim também com o vinho. Recordo-me de ter despertado para a leitura com as épicas e gloriosas aventuras escritas por Emílio Salgari, a banda desenhada dos grandes super-heróis Batman ou Capitão América, os livrinhos do Mandrake ou do Major Alvega, ou as histórias aos quadradinhos do Zé Carioca, do Pato Donald e do Pateta. Também no vinho, lembro-me das primeiras vezes como se fosse hoje, nos já longínquos anos 80, à mesa das refeições com os meus colegas e amigos do Expresso – momentos em que, através de vinhos relativamente simples, fiquei a perceber a essência do espírito de partilha associado ao consumo prazenteiro do vinho.

Sim, lembro-me que foi com um tão vulgar quanto mobilizador UDACA 87, da União das Adegas Cooperativas do Dão, que dei os primeiros passos no mundo da enofilia. Como recordo perfeitamente que foi o Solar das Bouças a despertar-me para o prazer suave e refrescante dos vinhos brancos, ao mesmo tempo que me desvendava um outro lado da região dos vinhos verdes e uma casta que nunca mais dispensei neste meu percurso pelos encantos do vinho: a casta Loureiro.

Depois sim, tive oportunidade de chegar mais longe, de ler outros capítulos desta história que é feita de sensações, de cultura, de civilização, de aromas, de sabores, de conhecimento, de partilha, de conversas, de tudo um pouco. Quando provei o Duas Quintas Reserva 91 e contactei com o esplendor da Touriga Nacional, descobrindo a mestria do grande senhor do vinho que é João Nicolau de Almeida, antevi finalmente que a história também pode estar condensada numa garrafa de vinho. Ali, nos primórdios dos anos 90 do século passado – e precisamente com a marca que estava inscrita naquele rótulo – estava a dar-se o verdadeiro pontapé de saída na produção regular de vinhos DOC na região do Douro. Nem de propósito: foi também da colheita 91 que, alguns anos mais tarde, bebi o meu primeiro Barca Velha. Um vinho extraordinário, ainda hoje, 30 anos passados sobre o ano de colheita.

E porque falo de “O Perfume”? Porque nunca antes me tinha apercebido, de modo tão intenso, das similitudes entre o perfumista e o enólogo

Moral da história: nos livros como no vinho, o preconceito é indesejável e afasta-nos, quase sempre, do percurso mais indicado. Para além de nos privar, com elevado grau de probabilidade, do prazer da descoberta, de novas experiências, de vinhos (e, já agora, de livros…) francamente bons.

Por falar em livros – mas ainda a pretexto do vinho de que estou a falar-vos nesta breve crónica –, a obra-prima de Patrick Suskind “O Perfume” fica-nos na memória por estar envolta, tal como o seu título sugere, numa atmosfera literária dominada pelo “reino fugaz dos odores”. Esta história de um assassino que viveu na França do século XVIII foi o meu livro de férias há umas boas dezenas de anos. Apesar da violência repugnante de algumas das suas passagens, o romance de Suskind – que Stanley Kubrick não teve tempo de adaptar ao cinema, para infortúnio dos amantes da sétima arte – é uma espécie de encantador paradoxo, com momentos e descrições tão execráveis quanto belas.

E porque vos falo agora de “O Perfume”? Porque nunca antes me tinha apercebido, de modo tão intenso, das similitudes entre os perfumes e os vinhos, entre o perfumista e o enólogo, entre as famílias aromáticas de uma e de outra coisa, entre a captação da essência aromática que se guarda numa garrafa de vinho ou num pequeno frasco de perfume.

A precisão olfativa de Jean-Baptiste Grenouille, personagem central deste romance, deixaria roído de inveja o mais conceituado dos enólogos. É que Grenouille tinha o dom incomparável de avistar tudo através do olfato, mais do que qualquer olhar, sem necessitar da presença física do que cheirava. Por isso, mesmo sem nunca ter visto o mar era capaz de perceber que o imenso oceano “cheirava a uma vela inchada pelo vento, onde a água, o sal e um sol frio se uniam” num odor simplório que “era simultaneamente um odor grandioso e único no seu género” – que levava Grenouille “a hesitar dividi-lo em odores a peixe, sal, água, sargaço, frescura e outros”. Porque Grenouille não separava os odores do mar, tal como o enólogo não divide a componente aromática do seu vinho quando busca atingir a quintessência do que produz.

Atente-se nesta bela descrição de Patrick Suskind para melhor percebermos a analogia irrecusável entre o perfume e o vinho: Grenouille “preferia manter a unicidade do odor do mar, memorizá-lo num todo e usufruí-lo sem divisões” – pois “o odor do mar agradava-lhe tanto que desejou poder um dia tê-lo em toda a sua pureza, e em tal quantidade que lhe permitisse embriagar-se nele”.

Nós que conhecemos o mar, e vivemos ao pé do mar, sabemos que ele embriaga e encerra um “odor grandioso e único no seu género” como escreveu Suskind. Pois os grandes vinhos também são assim. Ou não sejam eles um produto inigualável da Natureza e um reflexo civilizacional da capacidade do Homem para a aproveitar e transformar – mas sem dar cabo dela. Nesse domínio, o Douro vinhateiro, que é justíssimo Património da UNESCO, é provavelmente o melhor exemplo que podemos dar.

Jornalista