Espinho foi, em tempos, terra de pescadores com grandes ligações a Matosinhos e à faina nas traineiras. Alberto Marinhão e Firmino Barros são dois dos muitos exemplos que marcaram gerações de espinhenses. Desde muito novos, o primeiro aos 13 anos e o segundo aos 16, optaram pela vida difícil no mar, na arte da pesca em traineiras. “Vida de escravidão” que acabou por ser um pouco melhor, embora “dura e difícil”, a partir de 1970. As estórias e os exemplos de dois pescadores que, mais tarde, acabaram por escolher outro trabalho.

Alberto Marinhão tem 69 anos e é natural do Bairro Piscatório, Silvalde. Começou na pesca nas traineiras, em Matosinhos, em 1965, com apenas 13 anos, até 1980. “Interrompi a vida no mar entre 1970 e 1975, altura em que estive na tropa, a cumprir o serviço militar obrigatório e fui para Moçambique”, contou-nos Alberto Marinhão, conhecido por ‘Beto’ que depois foi trabalhar para a indústria e, mais tarde, admitido como funcionário da Câmara Municipal de Espinho, estando atualmente reformado.

“Tínhamos de ter a cédula e, como éramos muito novos, os pais tinham de nos autorizar a fazer esta vida”, explicou Beto contando que “era necessário fazer uma prova de natação, para a Polícia Marítima verificar se sabíamos nadar. Descíamos uma rampa, até não termos pé e tínhamos de dar um mergulho e nadar novamente até à rampa. Muitos enganavam os polícias e vinham a caminhar no fundo e a fazer de conta que estavam a nadar. Eu fiz esta prova em cuecas. Mas, mais tarde, quando já tinha a cédula, a Polícia levava-nos para o mar e lá atiravam-nos à água para terem a certeza de que sabíamos nadar”.

Beto Marinhão começou a vida do mar, na pesca em Matosinhos, com 13 anos. “Recordo-me muito bem desses primeiros tempos, pois era uma vida muito dura. Comecei nas traineiras, em Matosinhos, no chamado tempo da ‘escravidão’. Puxávamos as redes ‘à unha’ [à mão] e éramos entre 40 a 50 homens em cada traineira. Em cada ‘beliche’, que eram quatro tábuas, dormiam três a quatro pessoas, com a roupa de trabalho. Levávamos para o mar dois pares de calças, duas ou três camisolas grossas por causa do frio e vestíamos umas meias de lã até aos joelhos”, descreve aquele antigo pescador admitindo que não conseguiam dormir nas traineiras. “Esfregávamos o olho porque, a qualquer momento, tínhamos de vir para o convés para trabalhar. Era um trabalho duríssimo”, recorda Alberto Marinhão explicando que os pescadores passavam toda a semana em Matosinhos e que só vinham a casa, ao Bairro Piscatório, em Silvalde, aos sábados à noite, “quando isso era possível! Mas, ao domingo à tarde já tínhamos de estar novamente em Matosinhos para a faina. Não nos dava para descansar. Apenas para tomar um banho e comer alguma coisa”.

Beto Marinhão era uma criança. O seu trabalho era “pegar na ‘chalandra’ [caíca, pequena embarcação a remos] para vir à ‘lingueta’ [rampa do cais] buscar os camaradas para os levar às traineiras e para os trazer das traineiras para a ‘lingueta’. Muitas das vezes fazia-o sozinho, porque era um ‘moço’ e esse era o trabalho que nos davam. Vinha à ‘ginga’ [com apenas um remo, na ré], a gingar e, por vezes, apanhávamos muito vento e não conseguíamos fazer a embarcação andar! As traineiras tinham de estar fundeadas com as ‘fateixas’ [âncoras], mais à frente, a cerca de 150 metros, porque não existia um cais na doca de pesca. Normalmente, os moços, como era o meu caso, eram os primeiros a chegar ao barco. Por dia fazíamos três a quatro viagens para transportar os camaradas [pescadores] para a traineira. A praia onde estava a doca chamava-se a Praia da Lingueta”, recorda Alberto. (…)

Firmino Barros chegou a ver o paquete Santa Maria em direção à sua traineira

Firmino Barros tem 76 anos e nasceu na ‘Mata’, na Rua 37 B, em Espinho. Teve uma passagem mais breve pelas traineiras e já depois de completar os 16 anos de idade.

“Comecei a trabalhar aos 10 anos, depois de ter terminado a quarta classe, na Fábrica Pereira Alves, nas tapeçarias. Depois fui trabalhar para o Heliodoro Pereira da Silva, como moço, até aos 16, a troco de mais dois escudos por dia. Foi a partir daí que fui para o mar”, conta Firmino Barros, que atualmente está reformado e que assume não ter saudades da vida de pescador.

“Não tinha dinheiro para o fim de semana, para dar uma volta com os meus amigos. E nessa altura só a trabalhar no mar é que se conseguia ter algum tostão para dar umas voltas.

Ganhava-se mais do que em terra. Por isso, fui trabalhar no mar, mesmo contra a vontade do meu pai que também era pescador em Matosinhos”, recordou Firmino.

“Foi uma vida que me valorizou, mas que não gostei. O meu pai era pescador e fui trabalhar com ele. Fui para as traineiras, em Matosinhos de 1962 a 1967, altura em que fui cumprir o serviço militar. Quando de lá saí não quis voltar à vida de pescador”, assume.

Segundo Firmino Barros, “em 1962, o barco já estava apetrechado com tudo aquilo que havia de mais moderno, na altura. A ‘retenida’ [corda] já era em plástico, e veio a substituir a de sisal que, com a água, ficava demasiado pesada. A rede de pesca já era em nylon enquanto as antigas eram feitas de algodão, sendo, por isso, muito mais pesadas”.

Tal como Alberto, Firmino Barros foi trabalhar na pesca como moço. “Ia buscar a companha a terra e levá-la para o barco. Lavávamos os cabazes e o barco. Só vinha a casa, a Espinho, de 15 em 15 dias. A roupa que levava lavada de Espinho era a que trazia no corpo, 15 dias depois! Até apanhávamos piolhos na cabeça porque não tomávamos banho”, recorda.

Reportagem completa na edição de 7 de abril de 2022. Assine o jornal que lhe mostra Espinho por dentro por apenas 30€.