O lugar das mulheres nas artes (a propósito do retorno de Balbina ao FACE)

Em 2010, quando Balbina Mendes veio a Espinho, pela primeira vez, o Face, inaugurado a 16 de junho de 2009, dava os primeiros passos na que poderemos considerar o seu percurso de afirmação. De facto, os museus, as galerias de arte ganham nome e prestígio com a vivência do lugar, com a marca das pessoas que, sucessivamente, convidam para o habitar, cruzando o seu “curriculum” com o deles, numa apropriação desejada e consentida.

1 – Em 2010, Balbina entrou na história das Galerias do FACE como a primeira Mulher a ocupá-las numa exposição individual, e a primeira a surpreender e a mobilizar largas audiências com as suas espantosas “Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes” – uma pintura de matriz etnológica, que recuperava arquétipos primordiais emergindo, interpretados e recriados em toda a sua magia, nas telas de grande dimensão e impacto. Nesse julho de 2010, ela foi também precursora numa outra vertente, ao promover no ato de inauguração um memorável espetáculo de danças com os caretos de Podence, que trouxeram o exotismo da “festa dos rapazes” às ruas de Espinho e, depois, aos corredores e salões do Museu.

No ano seguinte, com a Bienal “Mulheres d’ Artes”, em que Balbina Mendes esteve presente, o Museu de Espinho antecipou, em cerca de uma década, a marcante exposição de pintura no feminino providenciada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em ambas as iniciativas, a de Espinho e a de Lisboa, adivinhamos o mesmo escopo – não, como é evidente, o de “excluir, segundo o sexo”, mas o de valorizar a metade ancestralmente invisível, no sentido do alargamento e universalização das Artes.

Já quanto à complexa questão do modo como o “género” se exprime, (com caraterísticas próprias ou comuns e indistintas), a organização da 1.ª Bienal guardou-se de tomar partido, reconhecendo, sim, por um lado, que o masculino avulta, desde tempos imemoriais e ainda hoje como “padrão”, enquanto o feminino é “alteridade”, e, por outro, a ideia de que o sucesso das “mulheres-exceção” não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade da maioria, que as estatísticas, na fria linguagem dos números, denunciam.

No catálogo da 1ª Bienal, o Dr. Armando Bouçon, Diretor do Museu, a quem se ficou a dever a proposta de a realizar, escrevia: “Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino”. Foi. E não continuará a ser?

2 – Até um Museu que fez história, em Portugal, com quatro históricas bienais de Arte no feminino (entre 2011-2017) pode servir-nos  para mostrar como, ao nível de mega exposições individuais, se mantém, nas suas galerias, o predomínio masculino, enquanto nas coletivas, ou nas exibidas, mais modestamente, em pequenos recantos do Fórum, as mulheres já ultrapassam os homens, numa trajetória positiva, mas como se estivessem, ainda, em transição gradual do espaço privado para o público… É um exemplo que poderemos extrapolar a nível nacional e até internacional. Na verdade, essa constatação terá estado na origem do movimento pela Arte no feminino, que teve, e tem, em Paula Rego uma das suas líderes mais insignes e mais ativas. Nas suas próprias palavras: “As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?”. […] “Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com aquilo em que jamais se tocou – as experiências de mulheres”.

Um discurso com que a nova vaga feminista do último quartel do século XX incorporou o plano da expressão artística na globalidade da sua luta – discurso que, diga-se, neste como em qualquer outro campo, é tudo menos pacífico. Mais consensual será, certamente, a exortação de Gisele Breitling em favor de “uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções”.

3 – Balbina Mendes tem contribuído, poderosamente, para que as mulheres portuguesas assumam, na vida cultural e artística do nosso país, o seu “lugar de direito”. Fá-lo, ocupando, simplesmente, o lugar, com ânimo e talento de sobra, sem em nada se julgar discriminada. É um caso exemplar, entre grandes artistas, cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém implícita a exigência do tratamento igualitário. À margem de um discurso reivindicativo, alcança as metas que este se propõe, com isso abrindo caminho a outras mulheres, destruindo preconceitos de género, pela força do seu traço, pela singularidade de temáticas e de técnicas…

Embora, como velha militante da igualdade, desde os bancos da escola, não me situe exatamente nesta linha, tenho de reconhecer a sua eficácia, assim como, também, de admitir os riscos da defesa “à outrance” da “arte com género” em que Paula Rego acredita… Sendo, no seu patamar de genialidade, sinal vanguardista de “contracultura”, pode, a outros níveis, redundar em novos estereótipos do feminino, que, em sociedades patriarcais, são, fatalmente, menos valia. Por essa razão, num outro domínio, o literário, reservamos o feminino poetisa, para o comum das mulheres, mas chamamos “poetas” a uma Sophia, ou a uma Ana Luísa Amaral…Por essas mesmas razões, o crítico João Gaspar Simões, elogiando a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que abordava as problemáticas mais ousadas, a qualificava como “um grande escritor”. Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone! Balbina não o apreciaria, mas é uma das mulheres a quem se poderia, nessa lógica, aplicar. A sua arte é original, audaciosa, inovadora, (nos temas, na estética, policromia, fusão de materiais…). Transpõe para a pintura a experiência dos muitos mundos que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra, numa vontade constante de transcendência… 

Conheci-a na exposição em que nos contava a história do Douro, o “seu” rio, correndo entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens. Reencontrei-a no ciclo temático sobre as máscaras rituais, incursão telúrica à sua infância em terras de Miranda, em que se entrelaçam emoções e saberes, reinventados na tela, em explosões de cor…

Numa “leitura feminista” notei a naturalidade com que se apoderou, para a transfigurar em arte, da tradição masculina da máscara, símbolo da superioridade e camaradagem de sexo, em cerimoniais rigorosamente proibidos à mulher… Um prenúncio da força subversiva e libertária da sua aventura artística. Com o passo seguinte, ultrapassa uma última fronteira, numa fase em que a fragmentação ou transparência da máscara deixa o rosto a descoberto…o rosto feminino! É a definitiva rutura do interdito, que Paula Rego saudaria com o seu “gozo pela inversão e desalojar da ordem estabelecida”…

Na mostra agora em exibição nas Galerias Amadeo Souza-Cardoso, intitulada “Segunda pele”, o tropo narrativo de Balbina não nos revela, antes adensa o mistério dos jogos entre a face desocultada e as suas máscaras, mas revela-a como assombrosa retratista de rostos belíssimos e confirma o seu incessante questionamento sobre o ser, a aparência, o tangível e o intangível. Para o que vai encontrar inspiração na heteronímia pessoana, glosando em linguagem pictórica um mote literário. O resultado é, pura e simplesmente, fantástico!

A não perder, até 28 de maio, em mais este capítulo do roteiro do FACE e da vida cultural que Espinho nos oferece.

Manuela Aguiar

Ex-vereadora da CM Espinho e secretária de Estado das Comunidades