Construir mesas maiores

“Ensinar a cuidar é a melhor educação”, disse-me uma senhora com dois filhos adolescentes, adoráveis. Adoráveis com ela e pela forma educada com que me pediam um copo com água quente para que “a mãe tivesse água para o chá da noite, como ela gosta”. Adoráveis pelo cuidado para que a mãe pudesse continuar a ter estas pequenas rotinas de conforto mesmo a centenas de quilómetros de casa. Mesmo num país que não é o dela, mesmo num abrigo para refugiados, mesmo enquanto foge de uma guerra que nunca pensou ter de explicar aos filhos. 

Passei duas semanas como voluntária de uma organização não governamental que faz a coisa mais simples do mundo: dá de comer a pessoas vítimas de catástrofes naturais, atos de terrorismo, fugas de conflitos, ou em qualquer situação de necessidade urgente, como fizeram quando ofereceram centenas de refeições a quem estava na linha da frente do combate à covid-19. Já seguindo o trabalho deles desde a onda de venezuelanos que se deslocava em massa para a Colômbia, juntei-me à missão que têm neste momento em Przemysl, na fronteira da Polónia com a Ucrânia. 

A partir daquela que é, atualmente, a maior cozinha industrial da Europa, são confecionadas diariamente milhares de refeições – pequeno-almoço, almoço, jantar, sanduíches, bebidas – para serem distribuídas em diferentes pontos de chegada (mas também partida) de refugiados: um centro comercial transformado em abrigo, a incrivelmente caótica estação de comboios e o posto de fronteira que determina os limites europeus. Além disso, trabalham com dezenas de restaurantes e chefes espalhados por toda a Ucrânia e têm, assim, conseguido alimentar milhares de pessoas nas zonas mais afetadas pela invasão das tropas russas. Impressionam os relatos da rapidez com que chegam depois de um novo ataque. 

Para mim, foram duas semanas a cuidar de pessoas com vidas em suspenso, muitas, muitas longas horas sem mãos a medir para os que chegavam, para os que partiam (há cada vez mais pessoas a fazer a viagem em sentido contrário para saber de quem e do que deixaram para trás), mais de 60 mil sanduíches, milhares de refeições quentes para que “o que comer” deixasse de ser mais uma das mil e uma preocupações de mães que carregam filhos, incerteza e solidão nos braços, foram as sopas que insisti para que levassem e me agradeceram depois com uma emoção que eu não esperava. Afinal, é “só” comida, dizia eu nos primeiros dias. “É mais do que comida”, disse-me a mãe do pequeno Max, aliviada por ter saído da sua cidade, “a próxima a ser invadida” e confortada por ter, deste lado, quem cuide dela e dos filhos. 

Percebi bem rápido que, sim, “é mais do que comida”. É um aconchego a quem viu, a partir do seu quintal, mísseis a cair na cidade vizinha, a quem tem a mãe e a irmã “salvas” por um “corredor humanitário” que as levou, sabe-se lá para onde na Rússia, a velhotes sozinhos e desamparados que deviam estar a descansar de uma vida de trabalho. É o leite para as crianças antes de se irem deitar num espaço cheio de camas de campanha e aquela receita ucraniana, o borscht, que me disseram que “alimenta a alma” e tem cheiro de casa. Dar comida a quem foge é, afinal, dar um pouco de sabor a casa. 

“Obrigado por cuidarem de nós”. “Obrigado por vires de tão longe”. “Isto significa tanto”. É cuidar um bocadinho – “chuchut” – de quem chora de repente, de quem empurra, desde casa, a mulher numa cadeira de rodas, da mãe com dois filhos com deficiência e que sorri pela primeira vez quando os vê a juntar-se à “parada” de crianças que uma outra organização ali vai entretendo com sessões de karaoke e desenhos de mundos coloridos, da avó que acabou de chegar e carrega um cobertor e uma almofada para se juntar às centenas com quem vai partilhar o abrigo por sabe lá quanto tempo, do miúdo que perdeu a perna a combater. De vidas exatamente como as nossas, com o pormenor de ser uma vida a fugir de uma guerra. Foram dias também a conhecer pessoas que cuidam de pessoas. E de animais que não são deixados para trás. De todos. Para depois descobrir, por acaso, numa fila para entrar na Ucrânia, que, além de voluntários num abrigo, são soldados e estão de volta a “uma guerra de merda” e pensar que os dias de boa energia que demos uns aos outros podem não acontecer mais. Não, não é só comida. É, como diz o criador da organização, “construir mesas maiores”. Onde cabemos todos. 

Cláudia Brandão

Colunista