Poder político no feminino

O paradigma da Câmara de Espinho

1 – Em 2022, a Câmara de Espinho passou a ser presidida pela Dr.ª Maria Manuel Cruz e a contar com um Executivo maioritariamente feminino, com quatro mulheres e três homens, perfeita paridade no número de vereadores (3/3) e a “feminização”mais acentuada na área do
poder, do PS, nos membros com pelouros (3 mulheres e apenas um homem, o Vice-Presidente)..

Num país onde, em meio século de democracia, apenas sete dezenas de mulheres assumiram presidências, e onde, após as últimas eleições, em 2021, 9 em cada 10 das Câmaras são chefiadas por homens, Espinho é, hoje, um caso raro.
E mais: entre uma esmagadora maioria de municípios que nunca tiveram à frente uma mulher, regista a segunda presidência feminina da sua história. Pode, é certo, dizer-se mais pela força do destino do que pela vontade dos homens, visto que, em ambos os casos, elas assumiram o cargo em substituição, não por eleição direta.
Contudo, quando se faz o balanço do mandato e se avalia a marca que imprimiram na comunidade, isso é de somenos.

No século passado, a Senhora Dona Elsa Tavares era a Vice-Presidente e foi chamada a exercer o cargo, após o falecimento do saudoso Dr. Lito Gomes de Almeida. O seu desempenho foi brilhante! Legou-nos uma imagem de eficiência e simpatia, e, pelo que conheço da Drª Maria Manuel, parece-me que a história pode repetir-se.
E Espinho bem precisa de aparecer nos “media” pelos melhores motivos. A todos nos incomoda o ruído à volta do processo que corre na Justiça e que abriu esta oportunidade de as autarcas espinhenses mostrarem do que são capazes. Sobre o processo que originou a mudança, direi apenas que é cedo para ter opinião, é tempo de presunção de inocência dos
implicados e nada mais. Sobre o atual elenco governativo, as minhas palavras são de esperança e de encorajamento, como espinhense e como cidadã empenhada na luta pela igualdade de oportunidades.
Atualmente, neste ano de 2023, ao contrário do que aconteceu no mandato da pioneira Elsa Tavares, as mulheres são a maioria do Executivo. Em quantos outros dos cerca de trinta municípios de presidência feminina se poderá dizer o mesmo?… Por isso, o êxito deste Executivo para além de ser, naturalmente, muito importante para o progresso da nossa
cidade, assumirá, também, especial relevância para o avanço da democracia a nível local, pelo exemplo que dará e pelo incentivo que pode constituir à participação cívica e política das mulheres na “respublica”

2 – A espantosa persistência da sub-representação feminina no âmbito municipal não pode mais ser tolerada meio século após a revolução de abril e quase duas décadas depois da imposição do sistema de quotas para a igualdade pela via legislativa. A lei de 2006 impunha uma percentagem mínima de 33% de representantes do sexo sub-representado nas listas eleitorais e a sua revisão, em 2019, elevou esse mínimo para 40%. A distância a que estamos de atingir, globalmente, as metas teoricamente exigidas enfraquece, como é óbvio, a qualidade da nossa democracia. Contudo, é justo reconhecer que o grau de incumprimento revela grandes disparidades, do plano nacional, nos órgãos de soberania coletivos ao nível
local. O presente governo é o mais paritário de sempre e na Assembleia da República a diminuição dos desequilíbrios tem registado uma evolução positiva, gradual e constante, embora mais por feito de uns partidos do que de outros… As quotas, não o esqueçamos, nasceram e medraram à esquerda (PCP excetuado…).
O PSD foi percorrendo, lentamente, a sua “estrada de Damasco” (na primeira votação
da Lei da Paridade, em que o projeto do PS acabou derrotado, fui a única deputada social-democrata a votar a favor, talvez porque fosse, realmente, uma “social-democrata à sueca” seguidora do PSD sueco, o grande pioneiro na adoção das quotas para a Igualdade)

É a hora de perguntarmos quais as razões do clamoroso fracasso do sistema de quotas em Portugal, com a persistente discriminação feminina no universo autárquico, que continua retalhado no que eu gosto de chamar “as repúblicas dos homens” ou último reduto da misoginia…

No que respeita às presidências, poderemos apontar o dedo a uma lacuna da própria lei que se limita a números globais, e não à repartição de cargos e pelouros.
É claro que não é fácil encontrar remédio para o facto de as máquinas partidárias escolherem homens para liderarem as listas eleitorais e, consequentemente, se tornarem os futuros presidentes… Em regra, quem ganha a concelhia é o candidato ou indica o candidato… E, aliás, o mesmo se pode dizer de todas as presidências – da República, do Parlamento, do Governo,
dos Tribunais, das Autonomias… Vejamos: as nossas únicas Chefes de Estado em mais de oito séculos de história pátria foram as rainhas Dona Maria I e Dona Maria II, para além de algumas ilustres regentes, cujos nomes andam esquecidos; a única Primeira-Ministra, até hoje, foi Maria de Lurdes Pintasilgo, à frente de um brevíssimo governo de iniciativa presidencial, ficando a dever a sua nomeação ao General Ramalho Eanes, (no distante
ano de 1979…); a única presidente da Assembleia foi Assunção Esteves (do PSD), embora desde o ano de 1987, em que fui a primeira mulher Vice-Presidente (eleita por indicação do meu partido), tenha sempre havido uma ou mais deputadas escolhidas para esse cargo, que é o 2ª na linha de sucessão do PR). E à frente dos Governos da Madeira ou dos Açores, ou
dos Tribunais superiores, (o STJ, o TC.) também nunca houve mulheres.

É um panorama desolador” As razões que o sustentam exigem estudo, reflexão, debate e verdadeira vontade de mudança.
A mudança passa pela alteração de mentalidades e por alterações estruturais das instâncias partidárias. A meu ver, os obstáculos maiores à participação feminina neste campo, nesta geografia local, estão dentro dos partidos, ao menos dos partidos da área da governação, que se fecham em clãs ou facções com os seus chefes e os seus “boys” sedentos de poder e de progressão nas carreiras. E estes, no âmbito mais competitivo das concelhias são menos “politicamente corretos”, menos preocupados com grandes causas e princípios do que os líderes de topo… António Costa, filho de uma ilustre feminista, é, ele próprio, um feminista
convicto, mas os outros não são, maioritariamente ainda não interiorizaram o espírito da Lei da Paridade. Neste universo que aqui olhamos as estatísticas fazem a prova: o PS não vai além dos 16%, o PSD dos 10% e o PCP dos 7%…

Assim constatamos que é bem superior a proporção de mulheres no parlamento e no governo em instituições políticas de proximidade, onde, como é evidente, seria mais natural encontrar candidatas a gerir a “res publica”, atendendo à maior facilidade de compatibilização da vida familiar e da intervenção na vida pública (argumento muito usado para justificar a estrita faixa de recrutamento feminino) . E assim se explica, também, o fenómeno da sua menorização na divisão de trabalho no interior dos Executivos. Às mulheres que se disponibilizam a dar efetivamente o seu contributo piolítico, quando chega o momento de distribuir pelouros, são quase sempre atribuídos os que são menos apetecíveis para eles… Por exemplo: assuntos
sociais, ensino, cultura, sobretudo quando não sobejam os meios para fazer brilharetes.

3 – O desequilíbrio de participação política entre homens e mulheres é uma mancha na democracia, tal como o é o fosso crescente entre os mais ricos e os mais pobres, ou a segregação dos imigrantes, as assimetrias regionais, a macrocefalia da capital. Sempre me bati, com igual convicção, contra esse estado de coisas, contra as desigualdades, contra a injustiça social, o centralismo, a xenofobia. Ouseja, pela plena aceitação das diferenças

  • diferenças de sexo, de idade ou geração, de ideias, de religião, de origem, de costumes, que são sempre fator de criatividade e de progresso. Quem vem de fora traz consigo uma visão nova das coisas, novas propostas e maneiras de abordar problemas ou de traçar prioridades. É
    esse o caso das mulheres.

Ao contrário, por exemplo, de Maria de Lurdes Pintasilgo (que conheci quando era jovem estudante, em Coimbra, em reuniões do Graal, e que, devo dizer, muito admirava) não professo uma fé inabalável nas superiores qualidades do sexo feminino.
Acho que a sua capacidade de regenerar a política caída no pântano, (o pântano de que falava, no dealbar do século, um Primeiro-Ministro de Portugal) tem mais a ver com a cultura, ou o mundo de onde emerge, livre dos compromissos e dos vícios de um sistema anquilosado. Mitterrand via as mulheres como “imigrantes do interior” E eu, comparando a situação desprivilegiada das mulheres e dos imigrantes, não andava longe desta perspetiva ao usar outra expressão: as mulheres são estrangeiras no seu próprio país. Passei grande parte da minha vida envolvida nestas questões de igualdade, – para os estrangeiros, os emigrantes/imigrantes, as mulheres – e cada vez acredito mais que o futuro depende, fundamentalmente, da sua plena inclusão na comunidade, com intervenção ativa, com voz.

Em Espinho já vislumbramos esse futuro.

Manuela Aguiar

Ex-vereadora da CM Espinho e secretária de Estado das Comunidades