SAD ou masoquismo

Naquela manhã de Abril de 1994, no intervalo grande, em frente à “Industrial”, a notícia corria de mão em mão como uma bomba: morrera Kurt Cobain, um dos maiores ícones para aquela geração. Eu, que devorava em áudio e vídeo o “MTV Unplugged” dos Nirvana do primeiro ao último segundo, e que daí partira para descobrir os discos mais e menos consensuais da banda, fiquei em choque. Agora que elegera o primeiro herói fora da alçada musical dos meus pais e do meu tio punk, ele desaparecia assim, com a pompa reduzida a comentários entre aulas e a sofrer concorrência da corrida às gomas típica daquele intervalo.

Mas o dia reservava mais do que isso e, qual epifania, vejo-me frente a frente com um ídolo local.

“Então, estás bom?”, pergunta-me.

“Hmmm… estou, mas… tu… tu… tu conheces-me?”

“Claro que sim, puto, és mais conhecido do que o tremoço!”

Corei de vergonha e ainda hoje estou para saber como, mas o certo é que “ele” sabia quem eu era, nome, alcunha, tudo.

“Ele” era o Bernardo, baixista dos R.I.P., uma das bandas de garagem de referência em Espinho na geração grunge, quer pelos covers dos sons de Seattle e afins, quer por alguns originais que nos serviam de hino às primeiras borbulhas no rosto.

Ao longo dos anos, fui apreciando os caminhos deste personagem e a forma como se metamorfoseava: a paixão pelo grunge com os R.I.P. como Bernardo; a paixão pelo reggae como DJ Sattaman; a paixão pelo cinema como Bernardo Viterbo. E uma outra, paralela a todas essas – a paixão pelo Sporting Clube de Espinho, como Bernardo Gomes de Almeida.

Foi líder da claque em tempos difíceis, herdando o legado pesado dos eternos Tadeu e Pipa. Nos “Desnorteados”, adoptou o estilo que as memórias mais longínquas me dizem ter sido o do seu pai, Lito Gomes de Almeida, enquanto presidente de Câmara e de clube. Com eles, há Espinho: não há bairros, nem matas, nem Texas, nem ricos, nem pobres. Vareiros somos todos. E foi assim que, anos mais tarde, vi o Bernardo trocar as rastas pelo blaser e assumir mais uma missão: a de salvar o Espinho das intenções duvidosas de investidores estrangeiros.

Parece-me evidente que o momento desportivo do Espinho está bem longe do sonhado e, até, do que seria merecido tendo em conta o historial e o incessante apoio com que as nossas gentes pintam bancadas por esse país fora.

Ironia do destino, é, agora, com a proposta de criar uma SAD com investimento estrangeiro que se chega ao momento mais polémico desta sua presidência do clube. Não falei com o Bernardo sobre isso, nem tive a oportunidade de estar na recente sessão de esclarecimento promovida pelo clube, mas as questões que os adeptos levantam são mais do que legítimas: o que mudou nestes anos para que se tornasse desejável (ou, no mínimo, aceitável) este tipo de investimento? Como garantimos que não se repete por cá o caótico cenário a que, com os mesmos investidores, se assiste no Vilafranquense? Até que ponto queremos competir nas ligas profissionais sem o mérito desportivo de lá termos chegado em campo? Estas são só algumas das interrogações que tenho lido e ouvido por aí e com que não posso deixar de me identificar, pelo menos em parte.

Parece-me evidente que o momento desportivo do Espinho está bem longe do sonhado e, até, do que seria merecido tendo em conta o historial e o incessante apoio com que as nossas gentes pintam bancadas por esse país fora. O futebol vai de mal a pior, o voleibol bem longe dos títulos, o andebol sénior desaparecido, etc. etc. etc. No entanto, se este for o preço para, de uma vez por todas, termos um clube financeiramente respeitável e mais virado para a formação de atletas, há que o assumir, pagar e entender que nenhuma instituição tem futuro se não tiver presente.

Acredito que o Bernardo se tenha apercebido disto, que esteja farto de bater com a cabeça na parede para conseguir mais apoios, que esteja farto de esperar por um estádio que não há forma de estar pronto; que, mais do que tudo isso, esteja farto de não ver reconhecida a única coisa que não podem tirar-lhe: a paixão de sempre pelo clube.

Também acredito que tenha chegado ao ponto em que a sua visão mais romântica do desporto (ou, pelo menos, do futebol) tenha acabado atropelada pela inevitabilidade de novos tempos, novos paradigmas, novas abordagens, novos capitais. Infelizmente, para os elevados níveis de ambição desportiva que uma massa adepta como a nossa permite ter, a bola chutada à baliza acaba por ser um negócio semelhante à importação de bacalhau da Noruega – pouco há como lhe fugir.

Se chegarmos a essa conclusão, de que de facto queremos um Espinho virado para o sucesso e que estamos dispostos a vender uma forma de estar para comprar ligas profissionais, campos de treinos e jogadores à altura, todas as cautelas serão poucas ao salvaguardar quem são os investidores, qual a participação dos “nossos” nas decisões, o que está em causa no presente mas principalmente no futuro, como funciona se correr bem mas acima de tudo se correr mal. E é precisamente aqui que me conforta a paixão com que o Bernardo está na vida: já o vi entregar-se ao grunge, ao reggae ou ao cinema. Mas nunca o vi entregar-se a masoquismos.

Ricardo Fidalgo

Músico