Dei por mim a pensar, ao ver a placa “Carcavelos”, na primeira vez que ali fui, em 1995. Como é possível terem passado quase 30 anos? Manter a memória fresca torna-se mais fácil com a quantidade de factos inesquecíveis dessa viagem: o Peugeot 306 acabado de levantar no stand da Rua 19, a anunciar uma nova era da nossa vida familiar, marcada por jantes especiais e conforto extra; o concerto dos Stones em Alvalade, o primeiro de uma grande banda internacional que pude ver, marcado pelas músicas que ouvia na rádio e pelos bonecos insufláveis que cresciam para gigantes no palco; a caminhada de alma cheia de regresso ao carro… até descobrirmos que duas das jantes especiais tinham sido substituídas por tijolos-nada-de- especial e que, nas intermináveis horas seguintes, os bonecos seríamos nós, cada vez mais longe das acrobacias do Mick Jagger e do Keith Richards, montados no reboque que nos resgatou.
Já novamente sobre as rodas do 306, embora sem jantes especiais a condizer com a ocasião, o facto que verdadeiramente nos fez viajar para sul e, mais especificamente, para Carcavelos: ver jogar o Miguel Maia e o João Brenha, de quem o meu pai se tornara treinador, numa parceria que os levaria aos três Jogos Olímpicos seguintes e a mais uns quantos feitos que eu era capaz de jurar serem tão memoráveis que passariam a fazer parte do currículo obrigatório no percurso escolar de qualquer estudante deste país. Estava errado: há dias, num desses programas estilo quizz da hora de jantar, dois ou três jovens adultos não faziam ideia que era João Brenha quem emparelhava com Miguel Maia no voleibol de praia. Pior do que isso, os nomes de um e do outro não lhes diziam absolutamente nada.
Estou a ficar velho, só pode – sou cota!
Dei por mim a pensar, ao deixar Carcavelos para trás, que aquela noite (a de sexta-feira passada) tinha sido gloriosa. Desta vez não fui ver um concerto, fui dar um concerto, com os Souls of Fire. Correu tão bem, numa simbiose tão genuína com quem nos foi ver, que, em instantes absolutamente transcendentes, me senti a crescer em palco como aqueles insufláveis dos Rolling Stones. A carrinha que nos trouxe de volta a casa estava lá, as rodas também, o que não pôde deixar de me fazer sentir aliviado. Ah! As jantes não eram especiais, mas a quem é que isso importa quando a mente está ainda a pairar nos momentos mágicos que acabou de viver?
A fama é tão relativa que dois dos meus maiores heróis, Miguel Maia e João Brenha, que estiveram com mão e meia em medalhas olímpicas por mais do que uma vez, são perfeitos anónimos para novas gerações de portugueses. Eu, com feitos que não lhes chegam aos calcanhares, não quero ser famoso. Quero, como eles, viver jornadas inesquecíveis e contagiar quem se juntar com a verdade daquilo a que me entrego. E sentir que isso faz a diferença, como aqueles momentos gloriosos de Atlanta e Sydney fizeram para tantos que ali viram provado que não há limites para os sonhos.
Vamos imaginar que esses momentos não tinham sido televisionados (ou pelo menos, como em alguns dos de Atlanta, relatados na rádio). Teriam acontecido da mesma forma, estou certo; mas quantos de nós perderíamos em inspiração e superação e transcendência e identificação com aqueles dois gigantes? Cada vez mais, se não chega a nós, é quase como se não estivesse a acontecer.
E é essa a angústia que consome quem faz música em Portugal. Quantos dos que estão desse lado conhecem as últimas canções dos Souls of Fire, que ainda há dias deixaram em alvoroço os que nos foram ver a Carcavelos? Quantos já nos ouviram nas rádios? A quantos chega a nova música que é criada cá? Porque é que isto é relevante?
Volto a dizer que os músicos (grande parte deles) não querem ser famosos. Querem criar e passar as suas mensagens ao público. E poder viver disso. Dedicamos tantas e tantas horas a cada canção que nos parece justo que ela chegue a quem se destina. Já sabemos que o paradigma mudou e que não vamos enriquecer a vender discos; mas também sabemos que só podemos dar concertos se a nossa música for ouvida. Se for transmitida.
É por isso que é tão aberrante que acabe de descer a cota (ou quota) de música nacional que o Governo impõe como obrigatória às rádios. Há artistas portugueses de todos os estilos a produzir e editar dezenas de novas músicas por mês. Várias delas com qualidade suficiente para, pelo menos, terem a oportunidade de ser testadas por quem devia decidir: o público.
Porque aqueles que se vão entusiasmando com concertos em pequenas ou grandes salas em todo o país mostram que estamos certos e que há quem nos queira ouvir. Este pós-pandemia não é momento de reduzir a quantidade de música portuguesa nas rádios; pelo contrário, é a oportunidade de a catapultar para outros níveis de audiência, tal a forma como o povo comungou com os artistas que lhe foram oferecendo momentos culturais por todas as vias possíveis durante os confinamentos.
As percentagens que as rádios passam não são só canções: são milhares de compositores, intérpretes, técnicos, produtores e afins que trabalham em situação tantas vezes precária.
Estou a ser sabotado, só pode – sou cota!
Ricardo Fidalgo
Músico