Crimes contra a nossa réstia de humanidade ou como a história não começa a 7 de outubro

Como parece que o mundo acordou para o que se passa – há várias décadas e todos os dias – na Palestina, vamos lá a esse tema. Espero que, quando esta crónica for publicada, ainda haja Palestina, na verdade.

Tem-nos entrado pela televisão adentro, diariamente, um certo jornalista português a relatar os “momentos de horror” que tem vivido naquele território que os israelitas dizem que lhes pertence por direito – há quem lhe chame Israel, mas, como, há tempos, alguém me respondeu (tão bem) quando eu me queixava de que Israel não deveria estar na Eurovisão porque não era Europa, “Israel não é sequer um país”.

Esse senhor jornalista, que parece gostar muito de ser o protagonista das histórias que conta (como reagir à “notícia” do senhor a receber um telefonema do papa Francisco? Sim, por favor, coloquemos os holofotes nele…), estava, logo nos primeiros dias após o ataque do Hamas aos israelitas, a dar a entender que tinha sido Israel a permitir o crescimento daquele grupo, uma vez que vem providenciando tudo a Gaza, desde alimentação a energia elétrica, e até – imagine-se! – permite a entrada de ajuda humanitária naquele território.

É por eu andar a estudar esta área ou é evidente para todos que: se não fosse Israel, Gaza teria alimentação e energia elétrica e não precisava de qualquer ajuda humanitária? É que, pelo que vejo, isto é menos óbvio para o mundo do que eu julgava. Fomos tão rápidos no #PrayForIsrael que eu até achei que tinha perdido alguma coisa da história.

E agora aqui estamos, a pedir-lhes só mais um bocadinho a ver se conseguimos tirar milhares de pessoas de Gaza (para onde já agora?) para um dos exércitos mais poderosos do mundo destruir tudo o que ainda falta, depois de uma semana de bombardeamentos (ao mesmo tempo que bombardeiam a Síria, coitados, têm que se defender). Eu ia escrever “indiscriminados” a seguir, mas para quê? Com certeza, façam o favor de entrar e apagar a Palestina do planeta. Destruam hospitais, matem jornalistas e crianças e obriguem agentes humanitários a sair, inclusive ataquem os próprios civis quando estão, precisamente, a tentar sair de Gaza que nós vamos, por aqui, rezando por Israel. Não há regras. A humanidade, essa, foi destruida há muito. Quem fica surpreendido por aquele suposto país não ter subscrito o compromisso do Tribunal Penal Internacional?

Claro que, como em tudo, está mais do que provado, nós consumimos a informação que corrobora a nossa ideia pré-concebida, por vezes a que chega de forma mais simples. Dá trabalho estar bem informado. Por exemplo, se o senhor da televisão, que até já foi recebido pelo papa, diz que o Hamas decapitou crianças, é porque o fez.

Foi mais ou menos isso que disse o presidente dos Estados Unidos. Só que calha que não viu imagens disso porque essas fotos não existem (ou pelo menos ninguém as viu, sob a desculpa de que são demasiado violentas). Mas existem umas quantas, partilhadas, isso sim, indiscriminadamente, que terão sido geradas por…inteligência artificial (soldados com três braços a pegar em crianças? Quem dera a muitos pais…). Confrontar? Investigar? Ui para quê?

Se eu estou a tentar desculpabilizar o que quer que o Hamas tenha feito? Não estou. O movimento de resistência da Palestina responderia por várias atrocidades caso essas coisas dos crimes de guerra e do direito humanitário internacional fossem, efetivamente, postos em prática. O Hamas. Não os palestinianos. Nem aquele grupo nem o exército israelita podem sair incólumes. Não há nenhuma linha que justifique matar civis e, ainda assim, já morreram quase três mil palestinianos. E já foram ao dicionário procurar pelo significado de genocídio? Ou crime contra a Humanidade? Punição coletiva? Encaixa tão bem naqueles camuflados armados até aos dentes e de cruz de David ao peito que nos devia envergonhar andar a rezar por Israel (perdoem-me a generalização, há israelitas contra esta política terrorista, até, imagine-se, membros do exército que desertaram por causa disso e hoje estão a divulgar a narrativa. Onde podemos ir buscar fontes mais credíveis que estas, que nos afastem da propaganda de Netanyahu, que não tem pingo de receio em dizer que vai dizimar tudo? Que usa à descarada armas absolutamente proibidas pelo nível de destruição indiscriminada como o fósforo branco?).

O problema da narrativa é que, para o mundo, uns são terroristas e os outros estão no seu direito de se defender (ainda que nem isto justifique, perante o direito humanitário, o ataque insdicriminado de civis, mas ninguém ouve mais para a frente). Esquecemos e confundimos que falamos de três fações e não duas: o Estado (sublinhe-se a palavra) de Israel, o Hamas…e os palestinianos. Um militar disse na televisão que “esta guerra não é apenas contra o Hamas, mas contra os civis porque eles não nos veem como seres humanos, que nos querem matar”. Há décadas que os palestinianos foram retirados da terra onde viviam, humilhados, espancados, ficaram dependentes de água e eletricidade, são ameaçados (e gozados!) por colonos que lhes destroem as casas para erguer as suas. Todos os dias, isto não de agora. E estou a ser tão sucinta quanto este espaço me obriga.

E isto é assim desde aquele momento em que os alemães só queriam redimir-se pelo que fizeram aos judeus e lhes deram tudo o que eles queriam. Ora, eles queriam uma determinada terra que, dizem aqueles livros super factuais e que documentam provas irrefutáveis, lhes era prometida. E toda a gente sabe que fazer política com base em religião é uma regra básica de uma estratégia de sucesso. Perfeitamente justificável e justíssima.

Quando Gaza desaparecer, quando todos os palestinianos forem mortos, não terá sido o terrorismo que terá sido dizimado, mas toda a humanidade em nós.

Cláudia Brandão
Jornalista