O jornal (em papel nunca) vai acabar

“O jornal em papel nunca vai acabar”.Lembro-me da primeira vez que ouvi esta frase. Foi no primeiro ano da faculdade, do curso de jornalismo, há uns precisos 20 anos. Naquela altura, o digital ainda dava os primeiros passos por entre algumas experiências jornalísticas, não se sabiam bem o que aí vinha, mas o papel ia ser sempre o papel, diziam os professores.

Lembro-me de ler o Jornal de Notícias aos domingos, em casa do meu avô, e de sentir que aquelas páginas eram imensas, continham informação sobre tantos assuntos diferentes. Desde as coisas importantes da política lá na capital, às histórias dos pastores no interior. E todas tinham a mesma importância, todas as pessoas tinham um espaço para a sua própria voz. Até as coisas aqui da terrinha, volta  e meia, apareciam nas páginas daquele jornal grande. Ainda faltavam uns anos para decidir ir para jornalismo, mas as minhas mãos já sentiam o peso da instituição que era o Jornal de Notícias.

Já no curso, quando comecei a conhecer pelo nome os jornalistas que escreviam as grandes histórias, não deixava de encher o peito saber que eram do Norte, que, afinal, muito do importante papel do jornalismo no país era feito a partir daqui. Era feito no Jornal de Notícias, no Porto.

Quando tive um contacto mais próximo com o Jornal de Notícias, aí já formada em jornalismo, lia cada notícia com outros olhos. Admirava o rigor, o cuidado em contar as histórias, a forma como chegavam a cada pessoa, como não se ficavam por um lado da história. Como inovar na forma de contar e, acima de tudo, como conseguiam que tantas situações se resolvessem graças à sua denúncia. Era o jornalismo com que sonha quem entra na faculdade, acho eu. Era o meu jornalismo e não era feito lá longe.

E tudo aquilo era feito por pessoas que eu admirava, que iam à procura, que não se deixavam ficar pelo óbvio, pelo mais fácil, pelo que lhe queriam fazer passar. Ainda acreditavam que, se fizessem um bom trabalho, o jornal haveria de continuar a ser feito ali, no Porto, com as histórias da região, com as histórias das pessoas anónimas. No Jornal de Notícias, foram sempre acreditando que o que faziam era relevante, vital. E que teriam que continuar a fazer isso, bem feito, para não serem outro Primeiro de Janeiro, outro Comércio do Porto. Mesmo assistindo a cortes ali tão perto: na equipa de fotografia, nos colegas do Diário de Notícias, nos da TSF. Os mais de cem anos do Jornal de Notícias davam-lhes força e o jornal manteve-se, continuando a atrair jovens jornalistas, mantendo fieis milhares de leitores diários. E, imagine-se!, com resultados positivos.

A Global Media, o grupo que detém o Jornal de Notícias, quer despedir agora entre 150 a 200 pessoas, 40 delas jornalistas do Jornal de Notícias, cuja redação são, atualmente, nove dezenas. O despedimento coletivo inclui, ainda, mandar para a rua 30 pessoas da TSF e um número indeterminado d’O Jogo. Depois de terem tirado a redação do coração da Baixa do Porto, da “torre” como era carinhosamente apelidado, querem fazer crer que é possível manter a qualidade, a isenção, o rigor, procurar as notícias e o seu contraditório com uma redação esquartejada.

Não é e, por isso, os jornalistas fizeram uma greve de dois dias. Pela primeira vez, desde o dia em nasceu, há 135 anos, o Jornal de Notícias não saiu para as bancas durante dois dias seguidos, deixando um buraco vazio maior do que os olhos viram naquelas prateleiras.

Nestes dias, alguém escrevia nos comentários sobre a notícia do despedimento coletivo que o Jornal de Notícias há muito tinha perdido qualidade. Duvido que esse alguém se tenha dado ao trabalho de pensar porquê. Será porque a redação é cada vez mais curta e um jornalista não chega a todo o lado? Será porque quem o escreve trabalha em situação precária e não se lhe pode exigir que sinta a motivação daqueles que ganham balúrdios a explorar pessoas? Ou será que, mesmo motivado, mesmo ainda crente no sonho do jornalismo, no propósito do jornalismo enquanto quarto poder, enquanto denunciador, independente e justo, o jornalista, simplesmente, não lhe veja pagas deslocações ou outras despesas que um rigoroso trabalho de investigação exigiria? Ter-se-á, esse alguém, questionado sobre o monopólio dos grupos de media, sobre o fundo de investimento que agora entra na administração da Global Media, e os interesses que isso traz consigo?

Mas eles aí estão. E nós continuamos a não querer pagar para ler notícias. Queremos ler o jornal de forma gratuita nos cafés e sem conteúdos pagos nos sites. Queremos porque a internet nos habituou a ter tudo à mão, imediatamente, e de graça. Quanto muito a ter que levar com um anúncio até ao fim, mas quem está verdadeiramente atento ao seu conteúdo? Enquanto vivermos a acreditar que temos o direito de ler as notícias de graça, vamos, mesmo, assistir à morte dos jornais. Porque não haverá dinheiro para pagar aos jornalistas. Porque se os leitores não os valorizam, por os hão de valorizar os senhores dos fundos, os senhores do capital e do lucro cego?

Queremos ler o jornal de
forma gratuita nos cafés e
sem conteúdos pagos nos
sites. Queremos, porque a
internet nos habituou a ter
tudo à mão, imediatamente, e
de graça. Quanto muito a ter
que levar com um anúncio até
ao fim (…)

E sem jornalistas não haverá ninguém para contar a história do dia em que, afinal, o digital acabou com os jornais em papel e passámos a ler notícias feitas pela inteligência artificial, a ferramenta perfeita para a propaganda. O dia do espezinhar da democracia, do pluralismo, da isenção, de uma imprensa livre e descentralizada. Depois escusamos de nos queixar. Ninguém estará lá para ouvir, contar, denunciar a nossa queixa. Escusam de pedir ajuda ao Chat GPT, ele vai estar ocupado a “escrever notícias”.

Cláudia Brandão
Jornalista