Vive-se actualmente o paradoxo do leilão das ofertas e da gratuitidade no panorama das políticas públicas ao nível nacional, regional e local.
Parece não haver política pública, e sobretudo dos seus agentes, que não baseiem a estruturação de instrumentos, programas, iniciativas com base em disponibilização de bens e/ou serviços, de acesso gratuito, ou com modalidades de copagamento reduzidas ou quase nulas.
Eles são transportes gratuitos, refeições gratuitas, computadores gratuitos, e tudo o mais que seja gratuito. O importante é que seja gratuito.
Ora, como sabemos, nada disto é gratuito. A questão é quem paga e como paga, e esta reflexão fundamental do que deve ser e como se organiza a sociedade e a comunidade na disponibilização de bens e serviços de interesse público e comunitário, e a sua forma de financiamento é substancial para assegurar a oferta, que seja consentânea com a procura e as suas reais necessidades, e a sustentabilidade dessa mesma oferta.
O Orçamento de Estado prevê para o ano de 2024, um programa de financiamento do serviço de transporte público de 438 milhões, que deverão ser canalizados para financiar a compensação pelo congelamento dos preços dos passes sociais e os passes sociais gratuitos. Destes 410 milhões de euros serão suportados pelo Orçamento de Estado e 28 milhões serão suportados pelos Municípios.
O Ministro da Educação referenciava, há não muito tempo, que num universo de um milhão e trezentos mil alunos, quatrocentos e cinquenta mil beneficiam de Acção Social Escolar. “É um número significativo” afirmava.
Ora, é um número impressionante. 35% dos alunos beneficiam de acção social escolar, ou seja, um aluno em cada três. Este é um número que nos devia deixar a corar de vergonha. Se por um lado se compreende que a política pública de apoio social deva crescer para apoiar um número tão significativo de pessoas, e que o está a fazer, nos pareceria um conseguimento com regozijo, tal na verdade não é mais do que o reconhecimento da fatalidade do panorama socioeconómico do país e das nossas famílias.
Se um país não almeja com as suas políticas de desenvolvimento alcançar a capacidade das famílias evoluírem nas suas condições de recursos e de partida, então certamente, não estamos no caminho desejável.
Se estamos num caminho em que cada vez mais famílias necessitam de apoios sociais, que carecem de maior oferta pública de apoios sociais, estamos num caminho insustentável de reprodução de pobreza, carências e de manutenção de um quadro de baixo desenvolvimento.
É, portanto, compreensível que a política publica se direccione para instrumentos de forma gratuita indiscriminada de bens e serviços à população, precisamente pelo reconhecimento das falhas imensas que as políticas do lado do desenvolvimento não têm permitido alcançar.
Compreensível, mas inaceitável, a médio e longo prazo.
Compreensível que numa ânsia de proporcionar as melhores condições e numa pretensa inclusividade de não deixar ninguém para trás e permitir a acessibilidade universal à população, independentemente da condição de partida.
É fácil seguir este rumo, e difícil não o fazer. Se o Governante o faz, se o autarca do município vizinho o faz, para além de toda a circunstância de opinião pulica generalizada de que os outros é que estão a fazer e o nosso não faz nada. No Município ao lado é que é! O Presidente da Câmara “pôs” tudo de graça e não pagamos nada. Neste Município, este Presidente não faz nada disso! É um Presidente condenado este último. Tem de o fazer, igual aos outros.
Mais do que isto é ver Autarcas a medirem-se pela quantidade de gratuitidade que proporcionam aos seus munícipes. Do quem faz mais barato. Do quem é mais “amigo” daqueles que não têm condição de fazer face à vida do quotidiano.
Quase que a ‘celebrar’ o facto de terem tantas famílias carenciadas e de serem ‘amigos’ de tantas. Quase que a ‘celebrar’: eu tenho mais famílias mais carenciadas do que tu!
“A reflexão sobre o que quem
deve pagar, quanto pagar, e
paga o quê? Uma reflexão que
não se vislumbra.”
É absolutamente ridículo!
Se são cada vez mais as famílias que não têm a capacidade der fazer face ao seu quotidiano, isto é o exemplo, o resultado e a evidência do falhanço das políticas públicas em proporcionar precisamente isso mesmo, que as famílias têm, pelo menos, o suficiente para o seu dia a dia, e mais do que isso, têm a esperança de um futuro melhor. Futuro melhor para si, para os seus. Futuro melhor na sua geração, na sua vida, no seu tempo. Não a perspectiva de um futuro adiado, de um futuro melhor pensado ‘apenas’ para as gerações seguintes.
Esta pressão pública generalizada enviesa qualquer racionalidade e de reflexão sobre a organização e sustentabilidade de medidas de política pública.
Para além de que tudo isto é um verdadeiro engodo que enviesa todo o princípio de racionalidade económica sobre o real custo da acessibilidade a bens e serviços.
A reflexão sobre o que quem deve pagar, quanto pagar, e paga o quê? Uma reflexão que não se vislumbra.
A resposta é sempre, é gratuito.
A resposta é: paga o Estado, paga a Câmara. É sempre alguém, uma entidade, outra, difusa, a pagar.
É gratuito. Mas todos pagam. Sob a forma de impostos e contribuições.
E são cada vez mais. Portanto a gratuitidade tem na verdade um custo absurdo para os contribuintes.
Esta banalização da gratuitidade é manifestamente nefasta para o sentido comum do bem público. Grátis e gratuito, significa, na verdade, uma prestação de serviço de livre acesso pago com os impostos e contribuições dos contribuintes.
E a factura é cada vez maior e mais penosa. A carga fiscal atingiu no último ano um valor recorde. Valor esse que o Orçamento de Estado para 2024 prevê que venha ainda a subir, e que constituirá novo recorde.
O esforço fiscal em Portugal, medido pelo Índice de Bird, é o quarto maior da União Europeia, apenas superado pela Grécia, pela França e pela Croácia.
O certo é que os portugueses são ‘intimados’ a pagar uma factura cada vez maior dos seus serviços públicos, através de impostos e contribuições. O certo é que subsiste um número bastante elevado de famílias carenciadas. O certo é que os serviços públicos não respondem na medida do que deveriam.
Quão revigorante seria que que os agentes públicos e os líderes de política pública concedessem tanto do seu foco na dinamização de um ambiente favorável à criação de riqueza que permitisse às famílias a elevação das suas condições de vida, ao invés de lhes exigir tanto para distribuir gratuitidade falível que não altera as condições de vida das famílias, não as transforma, não as melhora, não as faz progredir, e tão só as mantém no nível de carência sofrível, sem futuro.
Tito Miguel Pereira
Consultor
(Escrito em desacordo ortográfico)