“O acidente foi mesmo uma lição. Aprendi muito e ganhei a nível psicológico. Deu-me força mental e responsabilidade. Aquele momento fez- -me olhar para a vida de outra forma. (…) Acho que ganhei uma segunda vida. E tenho de a aproveitar. Não posso cometer os erros que cometi no passado. Fazia muita porcaria e achava que era indestrutível e que nunca me ia acontecer nada.”
As declarações não são de agora, mas apontam para uma inevitabilidade: a vida tem formas, no mínimo, estranhas de nos dar um rumo e de colocar à prova a nossa capacidade de resposta. Aos 16 anos, em plena ascensão desportiva, Diogo Ribeiro sofreu um acidente (de mota) que podia ter-lhe roubado tudo: ficou sem parte de um dedo, partiu um pé, deslocou um ombro, fez uma microrrotura no peito. Foram semanas agarrado à cama, meses de fisioterapia. As rotinas mais simples passaram a ser desafios enormes: ir à casa de banho, por exemplo, exigia o recurso a uma cadeira de rodas e a ajuda de terceiros.
Quantos jovens desta idade encarariam a quase fatalidade como impulso definitivo para se focarem no seu potencial e transformarem a responsabilidade perante uma carreira com tudo para ser excepcional?
Passaram três anos desde que foi abalroado. De lá para cá, inúmeros recordes nacionais e um percurso internacional que culminou, há dias, com o ouro inédito para Portugal num Campeonato do Mundo de Natação. A forma como, na pista, demora a perceber que ganhou, o festejo genuíno mas nada exagerado que se segue; Diogo Ribeiro tinha tudo para estar nas nuvens, mas, lá está, a vida já o ensinou a manter os pés no chão.
O que me leva imediatamente a pensar em Melody Gardot. O cenário é semelhante: tal como Diogo Ribeiro, Melody estava em duas rodas, no seu caso de bicicleta, quando foi brutalmente atingida por um carro. Tal como Diogo Ribeiro, Melody era vista como uma jovem promissora: tocava piano em bares durante horas, reproduzindo temas dos seus artistas favoritos.
Tinha 19 anos quando se dá o acidente que, durante meses, a atira para uma cama de hospital. As lesões são graves e algumas das sequelas ainda hoje a acompanham: vertigens e hipersensibilidade ao som e à luz, por exemplo. Na altura, sofreu um traumatismo craniano, perdeu a memória, teve de reaprender a ler e a escrever. Imagino que tenha querido desistir muitas vezes, mas a música salvou-a.
Já não conseguia tocar piano e o médico convenceu-a a aprender guitarra. Compôs e lançou os primeiros temas na cama, ainda antes de conseguir voltar a andar. Dada a extrema sensibilidade ao som, opta por criar música calma e, em poucos anos, torna-se referência do jazz moderno. A forma como canta e como sente é uma verdadeira pérola.
“A forma como, na
pista, demora a
perceber que ganhou,
o festejo genuíno
mas nada exagerado
que se segue; Diogo
Ribeiro tinha tudo
para estar nas nuvens,
mas, lá está, a vida já
o ensinou a manter os
pés no chão”
Ninguém sabe como seria a carreira de Diogo Ribeiro ou Melody Gardot sem aquele instante que, segundo eles, os despertou. E que, ao mesmo tempo, os responsabilizou, fez com que repensassem a vida, reaprendessem rotinas básicas e, talvez até, se refundassem.
Deixar de ser indestrutível, como diz Diogo, tem muito que se lhe diga, mais ainda em idades em que se molda o carácter. No seu caso, a recuperação física é completa e absolutamente evidente no sucesso desportivo.
Melody garante que nunca deixa de se lembrar da sorte que teve. E essa acaba por ser a sorte de quem a ouve: durante muito tempo, foi em palco que, literalmente, fugiu da dor; talvez ainda hoje assim seja. E se a música a resgatou para a vida, agora é com música que tenta proporcionar momentos felizes.
Estas pessoas não lamentam os acidentes que sofreram; fazem deles motivo para serem melhores. Homenageiam a vida sempre que mergulham na piscina ou sobem ao palco. E ensinam-nos com isso.
Porque as pequenas e grandes fatalidades correm sempre ao nosso lado e nem sempre percebemos como as encarar, menos ainda como as usar a favor. Como o mediático caso do futebolista João Cancelo: perdeu a mãe aos 18 anos, na estrada, após um jogo seu; o pai ficou em depressão profunda. Na hora da verdade, e com tudo para cair, João decidiu que passaria a competir por eles.
Tornou-se num jogador de eleição, provavelmente maior do que as previsões apontavam. Jogou (joga) nos melhores clubes do mundo, é uma das figuras da Selecção Nacional. Se, de alguma forma, o acidente (em que também esteve presente) o definiu, foi pela determinação com que dele emergiu.
Homenagear a vida, homenagear quem partiu ou mesmo fugir da dor – Melody Gardot compara o efeito de estar em palco com o murro no estômago que nos faz esquecer, por momentos, daquela terrível enxaqueca. Acredito que, pelo menos durante algum tempo, Cancelo tenha usado o campo de futebol da mesma forma. Mas, entretanto, foi lá que voltou a sorrir.
Diogo Ribeiro, Melody Gardot, João Cancelo: são “só” faces visíveis da extraordinária capacidade de superação com que todos fomos brindados. Tenhamos a capacidade de, como eles, a encontrar quando precisarmos.
Ricardo Fidalgo
Músico