As nossas leis e os seus intérpretes

 1 – As leis foram, em tempos idos, o meu ofício. Formei-me na Faculdade de Direito de Coimbra, no distante ano de 1965. A escolha do curso e da cidade foram, por acaso, fruto de “dois equívocos literários”, da leitura de escritores que me fascinaram. Um americano, Erle S. Gardner, criador de Perry Mason, advogado das causas impossíveis, capaz de fazer justiça contra as (in)justiças do sistema, com os seus dotes de investigação criminal e de argumentação na sala do tribunal. E um português, Trindade Coelho, com a sua obra (autobiográfica) “In illo tempore”, o livro que conta as hilariantes aventuras e desventuras de uma turbulenta e brilhante geração de estudantes coimbrãos. Eu temia que aquela Coimbra já não existisse, tal qual fora, mas esperava encontrar, das suas lúdicas glórias, alguns vestígios. E, de certo modo, isso aconteceria. Pelo contrário, as oportunidades de imitar Perry Mason não surgiram nunca – não passei da defesa de pequenos larápios, e protagonistas de desavenças menores ou acidentes de trânsito – durante o estágio e cinco anos de advocacia. Contudo, dos dois referidos “equívocos literários” nascera, afortunadamente, a escolha certa, porque gostei muito da cidade, da “velha academia”, e do curso. Uma das minhas matérias preferidas era “Teoria Geral do Direito”, onde aprendi as regras de interpretação das Leis, e me habituei a conviver com a eventual inevitabilidade de diferentes interpretações, baseadas em admissível fundamentação…

Tendo trocado a advocacia pelo trabalho jurídico de gabinete (estudos, pareceres, legiferação…) e pelo ensino universitário, em Coimbra e Lisboa, acabei por me ver, a contragosto, em cargos políticos, que aceitei como temporários, mas se tornaram de longa duração, e onde, sempre me preocupei em respeitar a Lei, tão bem interpretada e aplicada, quanto sabia e podia, na minha esfera de ação.

2 – Assim sendo, confesso espanto e incompreensão pela forma como tantos ilustres políticos/juristas (com os quais não posso nem pretendo sequer comparar-me), dão a volta às Leis….

Um exemplo: a declaração do consagrado constitucionalista e atual Presidente da República, feita durante o ato da posse de um Governo maioritário, de que não permitiria a substituição do Primeiro Ministro no cargo, por considerar que o vencedor das eleições parlamentares fora ele, não o seu partido. Ora, a Lei diz, inequivocamente, o contrário – só os partidos podem candidatar-se e ganhar eleições legislativas. A apresentação de listas de independentes só é permitida a nível autárquico onde, por sinal, a renúncia do presidente, em regra, não desencadeia novas eleições.

Uma tal “personalização” de resultados das legislativas, é, a meu ver, inaceitável, e está a custar ao país, neste momento, o preço alto de eleições antecipadas, a meio de um mandato. Para que o prejuízo não seja maior, resta-nos a esperança de que, a 10 de março, a votação nos traga uma nova maioria, a possibilidade de coligação no campo democrático, ou a viabilização de um Governo minoritário – prática frequente nestas cinco décadas que conta a Democracia em Portugal. Nenhuma das hipóteses é coisa certa, ainda por cima, num quadro negro internacional….

Todavia, nem só os políticos fazem interpretações descabidas das leis – os Tribunais também, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Vejamos o mais recente “case study” que chocou o país: a detenção, por 21 dias, de três arguidos, o ex-Presidente da Câmara do Funchal (“ex” porque, logo que foi arguido, se demitiu…) e dois empresários, à ordem de um juiz, que, por fim, lhes não aplicou qualquer medida de coação. Chocante, porque, para tomar a decisão, a lei dá ao Juiz quarenta e oito horas! É, aliás, um prazo normal, em Direito comparado. E um prazo rigorosamente cumprido em países do chamado “1º mundo” (melhor dizendo, em “Estados de Direito”).

Qualquer leigo na matéria, familiarizado com as excelentes séries policiais do “Star Crime”, não ignora que assim é. Em Portugal, porém, o prazo pode ser desrespeitado, sem limites, graças à interpretação permissiva do STJ…

É claro que, naqueles países, o Ministério Público não pode levar os arguidos a juiz, e, só depois, recolher provas convincentes… A avaliar pela decisão do Magistrado, após 21 longos dias, é o que se terá passado na Madeira, onde assistimos, pela televisão, ao “espetáculo” de recolha provas. A “operação Funchal”, envolveu dois aviões militares, mais de 200 investigadores policiais, uns quantos magistrados e os inevitáveis jornalistas, que são sempre os primeiros a chegar, chamados sabe-se lá por quem…

Lá estavam, no Aeroporto Cristiano Ronaldo, as televisões para oferecerem, em direto, o “show” de aparência militar, que se diria saído de uma velha reportagem da guerra colonial. A “guerra” possível, no “império” restante –  as ilhas atlânticas, e uma enorme zona marítima exclusiva. Não é pequena herança! Porém, muito à portuguesa, o “Terreiro do Paço” mal explora os mares, mas preocupa-se em mandar para as Ilhas o seu Representante, um “Governador Geral”, que não se chama assim, mas faz as vezes.

Eu, sendo convicta regionalista e defensora das Autonomias, vislumbro nesse vetusto poder de um não eleito sobre Órgãos sufragados pelo povo , uma última sobrevivência colonial…

“Só os partidos
podem candidatar-se e ganhar eleições
legislativas. A
apresentação de listas
de independentes só
é permitida a nível
autárquico onde, por
sinal, a renúncia do
presidente, em regra,
não desencadeia
novas eleições”

3 – De má interpretação e má aplicação das leis está, como se constata, a nossa República cheia… E as consequências no mundo das instituições políticas vão a ponto de ameaçar, mais e mais, a sua governabilidade e reputação. Ninguém escapa! De alto a baixo, muitos estão sob escuta e todos, potencialmente, sob suspeita, até o Presidente, (num episódio luso-brasileiro rocambolesco, e sem pés para andar), o Primeiro-Ministro (ouvido em escutas, que até podem ter sido só um engano no nome, pois Costas há vários), um Presidente de Governos Regional, e uma infindável fileira de autarcas.

Os processos fazem estragos, mesmo quando acabam por “morrer na praia”, como mostra o recentíssimo desfecho do processo de Caminha, ou o aberrante processo de Matosinhos (em que foi posta em causa a prerrogativa da Presidente de Câmara escolher, livremente, o chefe de gabinete, como se esse cargo não fosse, por natureza, de confiança pessoal!).

No espaço de poucos meses, vimos o Chefe de Estado ser enxovalhado, o Primeiro Ministro cair (e, com ele, por livre arbítrio do PR, o Governo e a Assembleia da República), o Presidente do Governo Regional da Madeira renunciar, (arrastando, ou não, o Governo e a Assembleia Regional, conforme o aguardado novo veredito do PR…) e autarcas tombarem, um atrás de outro.

Não tem que ser assim…  Como qualquer cidadão exemplar, e até mais do que o cidadão comum, os políticos são alvo fácil de maledicência e denúncias mirabolantes. É crucial que se reaprenda a dar menor significado à figura de arguido, e maior à presunção de inocência! Para isso, os titulares de cargos públicos, estando de consciência tranquila, devem ter a coragem de resistir à força intimidatória dos libelos, mantendo-se nos cargos, como fizeram os dois sucessivos presidentes da Câmara do Porto, os Ruis, o Moreira e o Rio. Este último foi arguido oito vezes, durante os seus mandatos autárquicos, nunca abandonou o posto e, no fim, saiu de cabeça erguida.

Esperemos que o Presidente da República, por seu lado, deixe de colaborar no abate de assembleias e governos, quando sustentados por maiorias! Esperemos que, muito em breve, evite eleições antecipadas na Madeira – uma forma de dizer “mea culpa”, por opções de um passado próximo, e de diminuir, no futuro, evitáveis efeitos de interação da Justiça e da Política. Essa é, afinal, a forma de deixar que ambas sigam o seu curso, sem sobressaltos, até ao termo dos processos. Há que não fomentar, ao menos, a ingovernabilidade precipitada pelos próprios políticos. Poupe-se e poupe-nos, Senhor Presidente!

Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado das Comunidades e Ex-vereadora da C.M. Espinho