1 – Esta ano falou-se muito dos votos da emigração, quer nos media generalistas, pouco preocupados em aprofundar a matéria, quer pela voz dos mais distintos comentaristas, de quem se pode dizer mais ou menos o mesmo. Só foi tema porque os escassos quatro deputados da emigração podiam decidir a contagem final, e porque o Chega ganhou dois deputados, um deles no lugar de Santos Silva. Na verdade, o Presidente da Assembleia fora derrotado no interior do PS, pelos seus correligionários, que não lhe perdoaram ter apoiado José Luís Carneiro, abandonando-o à sua sorte num círculo demasiado ingrato. Na presente conjuntura, qualquer outro socialista sofreria o mesmo destino.
É um erro (comum e repetido) desvalorizar a conjuntura na análise das tendências de voto na emigração, como se não acompanhassem as tendências que se desenham no país. Admito que haja, aqui e ali, fatores internos que influenciam escolhas, mas as diferenças, de comunidade para comunidade, dentro e fora da Europa, são comparáveis às que existem de região para região, no continente e nas ilhas atlânticas.
Vejamos o historial de votações, nos círculos da Europa e de Fora da Europa, no último meio século.
Na Europa, a regra foi a divisão de deputados entre PS e PSD, com o PS a contabilizar o maior número de vitórias. Contudo, as maiorias de Cavaco e Silva, no país, repercutiram, de imediato, nas comunidades, deixando, ao menos uma vez, o PSD a escassos votos de ganhar os dois deputados. E a última grande maioria (de António Costa) deu, efetivamente, ao PS o pleno de deputados. Era, por isso, expectável a enorme quebra da votação no PS e o substancial aumento do Chega, a prejudicar a recuperação do PSD, mas surpreendeu o seu 1º lugar na Suíça e no Luxemburgo. O que distingue a emigração nestes dois países? Essencialmente, o muito menor grau de integração na sociedade local, revelado pela intenção de regresso, pelo envio de remessas (proporcionalmente muito superior ao da França), pela maior sensibilidade ao abandono pelas autoridades nacionais. A retirada de direitos adquiridos pelo Governo de Costa, nomeadamente, no setor da Saúde, (restrições impostas no acesso ao SNS…) teve um efeito tremendo! Tal como no Algarve, a votação maciça na extrema-direita, foi uma forma de protesto!
Fora da Europa, à semelhança da Madeira e de certas zonas do norte e centro do continente, o PSD venceu sempre – e agora, também. De início, repartia os deputados com o CDS, destinatário dos votos da direita. Com o declínio deste partido, esse voto passou, como “mal menor” para o PSD, e acaba de “descobrir” o Chega, (aliás, numa lista encabeçada por um ex-PSD de São Paulo…). O PS tinha fraquíssima adesão, correspondente a franjas ideológicas de esquerda. No Governo, contudo, surgiu com uma face de moderação e pragmatismo e foi crescendo, graças a Secretários de Estado das Comunidades, mais pró-emigrantes do que o próprio partido (penso em José Lello e em José Luís Carneiro). Pela primeira vez, em fins do século XX, e, por duas vezes, recentemente, conquistou um deputado neste círculo, (no 2º lugar, onde, dantes, ficava o CDS).
2 – Em 2024, o PSD ganhou o Círculo Fora da Europa, tendo por cabeça de lista, um antigo Secretário de Estado de boa memória, José Cesário. Conseguiu resultados esmagadores em Macau e em Israel, e amplas vitórias nos EUA, no Canadá e em toda a África. No Brasil, porém, só ganhou em São Paulo…
Em certa medida, esta perda para o Chega é culpa do PSD, que promoveu Ventura na famigerada candidatura à Câmara de Loures, tal como o novel Deputado daquele partido. Um acalentado por Passos Coelho, outro por Rui Rio, (como nº 2 da lista anteriormente encabeçada por Maló de Abreu). Digamos que das últimas lideranças do PSD só se salva Montenegro, com o seu já histórico “não é não” à extrema-direita…
A nata dos comentaristas políticos não destaca esta evidência, prefere fantasiosas explicações da adesão dos nossos emigrantes a cultos evangélicos, que sustentam o bolsonarismo. Que ideia! Muitos portugueses pertencem, por razões ideológicas, às hostes de Bolsonaro, não por causa do sustentáculo evangélico, mas apesar dele… Constituem, certamente, a mais católica, apostólica e romana ala desse movimento extremista. E são, fundamentalmente, anti- Lula! Por isso, o vergonhoso ataque do Chega ao Presidente Lula da Silva na Assembleia, em 2023, transformou-se, no seu mais eficaz ato de campanha eleitoral em 2024. O vídeo da pavorosa cena parlamentar passou, constantemente, nos meios de comunicação e propaganda, que os bolsonaristas puseram ao serviço do partido irmão. E, se houve coisa prejudicial a Santos Silva, na campanha que “virou brasileira”, foi o seu (louvável) papel nesse incidente de dimensão internacional.
Nos EUA, ao contrário do que alguns temiam, o “trumpismo” pouco pesou no voto emigrante, porque os portugueses separaram as águas, e não “americanizaram” o sufrágio.
3 – Somos um país de emigração tradicional, que teima em abordar este fenómeno de modo ligeiro e estereotipado. Poucos foram os comentaristas que denunciaram outros aspetos do processo eleitoral, designadamente a chocante sub-representação parlamentar dos emigrantes. Marques Mendes foi exceção ao salientar que, nas comunidades do estrangeiro, 334.000 votos elegeram quatro deputados, enquanto, por exemplo, em Leiria 274.000 têm direito a dez, e em Coimbra, 242.000 a nove….
O problema vem de trás e agravou-se, desde que o recenseamento foi, (e bem!), alargado a cerca de um milhão e meio de expatriados, os que têm cartão de cidadão atualizado. Foi um passo na direção certa, mas a exigir outros ajustes. Com caráter urgente, destacarei três:
– O aumento do número de deputados da emigração
– A eliminação, no voto postal, da exigência de junção da fotocópia do BI ou do CC, em envelope separado. Em alguns países, mais da metade, e, no conjunto, cerca de 40% dos votos expressos foram anulados por incumprimento deste prescindível requisito. É inaceitável!
– A facilitação do voto, conjugando as diferentes modalidades possíveis, voto presencial, por correspondência e eletrónico (solução que eu já defendia enquanto deputada, há mais de duas décadas…).
Os últimos dois anos foram, neste domínio, completamente perdidos, por inércia de um Governo largamente maioritário. Esperamos que o futuro Governo, apesar da sua escassa maioria, se empenhe em alcançar os consensos para soluções, que são uma exigência democrática. Obstaculizar estas reformas equivale a retirar, na prática, o direito de voto reconhecido, na letra da lei, aos portugueses de estrangeiro. Equivale a manter o seu tratamento desigual, a sua “capitis diminutio”, uma cidadania de segunda, cinquenta anos depois do 25 de Abril de 1974.
Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado das Comunidades e Ex-vereadora da C.M. Espinho