Quando pouca gente é gente a mais

Não gosto de Tripas à Moda do Porto. Mas o encanto com que aquele indivíduo as vende é absolutamente irresistível – “as nossas tripinhas são de sabor verdadeiro, não há aqui nada sem qualidade para camuflar, como fazem por aí (…) é o melhor prato da casa!”. Resistência quebrada, venha daí uma dose de Tripas, mas… sem tripas.

Mais ou menos de dois em dois meses, estamos ali, na mesma mesa, sabemos a ementa de cor, sabemos os diálogos de cor. E ainda assim, sabe tão bem ir a Chaves. Culpa, talvez, dessa previsibilidade, mas mais ainda da forma genuína e hospitaleira com que nos recebem há quase 10 anos. Fica difícil dizer que não.

As Tripas (mesmo sem tripas) são, de facto, um absoluto espanto, embaladas pelo sabor inconfundível das iguarias transmontanas.  E pelo tinto da casa. De repente, já nenhum de nós se lembra do frio que (também há quase 10 anos) vem do ar condicionado.

Olhamos para o lado e a televisão repete uma reportagem que já víramos, de relance e sem grande atenção, na noite anterior. Está sem som, mas as legendas permitem-nos apanhar o contexto: fala-se de e com artistas estrangeiros que escolheram pequenas aldeias portuguesas para viver, alguns na reforma, outros ainda a criar. Quase todos para lá dos 70, a julgar pela aparência.

As paisagens idílicas do interior do país são parte da justificação para esta escolha. Paisagens que, diga-se, têm muito em comum com algumas das que facilmente encontramos nestas viagens de trabalho até Chaves. Um dos imigrantes, pintor, chama-me particularmente a atenção: diz-se perfeitamente realizado com a mudança para Portugal (não me recordo exatamente para que localidade, mas para o caso pouco importa), não só pela beleza do sítio que encontrou para viver e trabalhar, mas também pelas gentes locais, que… não lhe passam cartão! Isso mesmo: ao contrário dos outros entrevistados, perfeitamente integrados nas respetivas comunidades, o sujeito em questão não procura vida social, interações ou, sequer, simpatia. Talvez porque já teve tudo isto em quantidades que lhe sobram, agora dá-se por feliz que a vizinhança o trate como “aquele tipo estranho que pinta uns quadros” e que não insista em aproximar-se. Não só escolheu um sítio com pouca gente, como mesmo essa pouca gente aparenta ser para ele gente a mais.

“São tantas e tão
boas as surpresas
que quem nos rodeia pode trazer
quando estamos
abertos a ouvir,
a agradar e a ser
agradados.”

Damos por nós a refletir, ali à mesa, mas também depois, durante a tarde, quando oferecemos aos corpos pálidos umas horas deste magnífico sol de abril. Quantas vezes nos forçamos a interagir com os outros, inclusive em dias ou fases de menor vontade, para pôr um “visto” nos indicadores de dinâmica social? E quantas atividades “inventamos” para não nos sobrar tempo para pensar nas grandes questões ou nos pequenos problemas? Quantas vezes as duas coisas em simultâneo: interagir com os outros em inúmeras atividades?

Estou certo de que até os mais sociais (temo que não seja propriamente o meu caso) têm dias em que preferiam não parar para falar com aquele vizinho simpático ou ouvir as coscuvilhices da ordem quando se sentam no café ou fazer conversa fiada na pausa matinal lá no trabalho. Dias em que faziam cara feia aos telefonemas dos amigos mais proativos. Dias em que o mundo se calava e os deixava só ser. No extremo, dias em que pegavam nas trouxas e se mudavam para uma aldeia no meio do nada, quase sem acenar a quem passa. Enquanto bronzeamos a pele, nas margens verdejantes de uma barragem deserta, o silêncio é tão grande que, por instantes, apenas ao som do zumbir das abelhas e do coaxar das rãs, entendo ao longe a realização daquele pintor antissocial.

Concluo, porém, que, embora aprecie sobremaneira ter momentos comigo mesmo e com a Natureza, principalmente pela ausência dos estímulos sem fim que nos preenchem o dia-a-dia, continuo a precisar dos outros e do que me dão. Dos que me fazem rir até não poder mais, dos que me fazem pensar, dos que amo, dos que nem conheço, mas enchem a sala do restaurante de comentários certeiros, observações absurdas ou recordações difíceis de acreditar.

Muitas voltas teria de dar a vida (próspera em dá-las, bem sei) para que, daqui a 20 anos, quisesse estar isolado de tudo. Certamente não a pintar quadros – desenho pior do que o meu sobrinho de 8 anos e, até, do que a minha sobrinha de 4 – mas, por exemplo, a fazer música. É provável que vá ter momentos em que isso me apetece, mas espero que contrabalançados por outros, em que a ligação às pessoas continue a fazer sentido. Para já, dedico-me a cultivar esse equilíbrio. São tantas e tão boas as surpresas que quem nos rodeia pode trazer quando estamos abertos a ouvir, a agradar e a ser agradados: vejam só as “tripinhas” do Miguel, imperdíveis até para os casmurros que juravam não lhes querer tocar.

Ricardo Fidalgo

Músico