Academia a correr para a frente

Tinha 15 anos e zero ligação à música, se esquecermos (por favor!) as tardes a cantar (berrar) Censurados ou GNR ou Rádio Macau no escritório lá de casa, verdadeiros barómetros da enorme paciência da vizinhança. Mas, nessa altura, motivado pela cena musical que animava Espinho à base de bandas de garagem locais, decidi que queria aprender a tocar bateria.

Cresci com desporto dentro e fora de casa – natação, hóquei em patins, voleibol e voleibol e voleibol. Todos os meus hobbies, até então, andavam à volta disso. Não deixou de ser estranho para os meus pais, portanto, que lhes pedisse autorização (e patrocínio) para me iniciar em aulas de música. Acabaram por aceitar (e pagar), impondo desde logo uma condição: morávamos num apartamento, por isso, era ponto assente que não haveria uma bateria lá em casa. Era quase como correr a maratona descalço.

Ainda assim, persisti e inscrevi-me nas aulas. Por incrível que pareça, a própria escola não tinha uma bateria real. Além de descalço, teria de fazer a maratona a correr para trás. Estudei um ano lectivo dessa forma: com aulas num protótipo com som equivalente ao de tocar em tupperwares e a praticar em casa nos próprios tupperwares. Exemplo de superação e sucesso? Não. Fim desse ano, fim da minha ligação à bateria (um dia, ainda vos conto mais uns episódios sobre o dono da escola e sobre o meu professor da altura, personagens verdadeiramente icónicas).

Lembrei-me desta história por mais do que uma vez nos últimos tempos. Primeiro, a propósito da conversa com um colega, músico, que há alguns meses se mudou para a Holanda (ou Países Baixos, como agora querem ser chamados). Em relativamente pouco tempo, que a ele lhe parece muito tal o esforço pessoal e profissional que a mudança exigiu, estabeleceu-se na cidade de destino, começou a ter trabalho regular e acaba de beneficiar de apoio financeiro significativo da autarquia local para gravação de um álbum. Sem burocracias de maior, concorreu, evidenciou mérito e, pouco depois, quase sem contar, recebeu o dito apoio na conta bancária.

Mais recentemente, nos bastidores de um festival em que toquei na Madeira, um músico suíço (baterista, por sinal) contava-me dos incentivos estatais que abrangem uma grande quantidade de músicos no seu país, para que possam criar e estar em digressão. Porquê? Porque a cultura não é vista como marginal; é vista como um bem essencial.

E isto faz toda a diferença. Eu que o diga: depois da maratona a correr para trás ao aprender bateria sem bateria, dediquei-me ao baixo eléctrico. Desta vez com instrumento em casa e com instrumento nas aulas, ao fim de alguns meses estava a dar os primeiros concertos.

Há subsídios para a Cultura em Portugal? Há, mas são tão viciados, tão burocráticos, tão escassos, que me fazem lembrar esse apoio a contragosto dos meus pais para as aulas de bateria: frequentei, é certo, mas destinado ao fracasso. Fui beneficiário do badalado Garantir Cultura, o programa com que o Governo prometeu compensar o sector pela gravíssima situação durante a pandemia de Covid-19. Mais uma maratona a correr descalço e para trás: atrasos e mais atrasos, pedidos absurdos, um pântano de dossiers e comprovativos e requisições.  Acenaram com uma boia de salvação, mas “esqueceram-se” de avisar que estava furada. E muitos, como eu, tão cedo não querem ouvir falar de tais “apoios”.

Era bom perceber-se por cá que este tipo de medidas, que devia ser estrutural, não serve para encher a pança aos artistas. Serve para que se produza cultura, para que circulem espectáculos, para que o público tenha oferta à disposição e se possa mobilizar em função dela. Como acontece em Espinho, com um belíssimo exemplo: a Academia de Música.

Tenho, como espectador e como formando, assistido ao notável trabalho feito pela Academia e pelo seu Auditório. Não faço ideia de que apoios terá, se é que os tem (imagino que sim); mas a programação é de nível altíssimo, do melhor que se vê no país. Há nomes internacionais de referência que, nas suas digressões, têm em Espinho o seu único ponto de passagem em Portugal. E isto é feito sem exageros nos preços dos bilhetes, o que, tudo junto, faz com que a sala esteja constantemente esgotada. Há quem me diga que vai por saber que é bom, mesmo que não conheça a fundo a obra de quem vai actuar. E há quem venha de todo o país porque os concertos são, de facto, excepcionais.

Num ambiente que é também ele de ensino, os alunos têm o verdadeiro privilégio de frequentar uma escola com condições excelentes, professores soberbos e, cereja no topo do bolo, habilitando-se a cruzarem-se nos corredores com grandes artistas. Nomes como Richard Bona, Stanley Clarke, Danilo Pérez, Rão Kyao, John Patitucci, Joe Lovano, Adam Cruz, John Scofield, A Garota Não, Bill Friesel, Marta Ren, Hamilton de Holanda e tantos, tantos outros, são garantia de que, por ali, se corre para a frente e com as melhores sapatilhas. Como cidade, Espinho tem de acarinhar a Academia, e, ao mesmo tempo, com o público e alunos que ali se formam, fomentar outros espaços e outros palcos que possam complementar essa oferta.

Ricardo Fidalgo

Músico