Livros sobre as mulheres nos tempos do “Estado Novo”

1 – “Antes do 25 de Abril era proibido” de António Costa Santos

Nas diversas iniciativas integradas nas comemorações da Revolução de 1974 em que participei, entre março e maio, numa data tão especial como é a do seu cinquentenário, a maioria colocava o enfoque na situação das mulheres portuguesas. No antes e no depois. Duas metades de um século. Não terá sido por acaso – é um ângulo ideal para compreender o espírito do “Estado Novo”. Do corporativismo, enquanto doutrina totalitária e enquanto movimento anti personalista, que combatia, por igual, o comunismo e o liberalismo, condenando radicalmente o individualismo. A sua primeira principal vítima sacrificial seria a mulher. A mulher, em geral, e a mulher casada, em particular, porque a sua individualidade se fundia no núcleo familiar, e ficava sujeita à autoridade do marido, a quem, tal como os seus próprios filhos, devia obediência. Nessa unidade orgânica, como nas empresas, na sociedade ou na política, os papéis eram definidos pelo Estado, que zelava pela sua rígida conservação. O homem detinha a chefia da família, como Salazar a chefia do Governo. Cada marido era um micro ditador doméstico, à imagem e semelhança do Grande Ditador nacional. Cabia-lhes interpretar e decidir o “bem comum” do seu agregado, mandar, censurar, proibir…

Muitas das proibições legais de então, hoje, causam espanto ou fazem-nos rir. Para quem queira, percorrer, ludicamente, a lista de alguns dos mais incríveis tabus do salazarismo, recomenda-se o livro referido em epígrafe. Faltará, aqui e ali, rigor científico, em alguns casos, especificidades verdadeiras nos anos trinta, já não o eram nos anos sessenta ou setenta, por força da alteração de mentalidades e costumes… De qualquer modo, dá-nos uma narrativa bem conseguida e engraçada do que “era proibido”. Vejamos: As senhoras andarem nas ruas sozinhas; As mulheres entrarem na igreja de cabeça descoberta; As mulheres casadas viajarem para o estrangeiro sem autorização do marido (nem que fosse apenas a Badajoz, ou a Vigo, comprar doçarias); As mulheres saírem à noite sozinhas; Minissaias nos liceus; Biquínis nas praias; O matrimónio às mulheres em certas profissões, professoras, enfermeiras, hospedeiras de bordo (salvo se conseguissem autorização do Governo!): as mulheres ingressarem em profissões, como a magistratura e a diplomacia, e, genericamente, ocuparem posições de chefia…

Embora em menor número, também havia, evidentemente, ditames aplicáveis a ambos os sexos, entre os quais: beber coca-cola, jogar cartas nos comboios; dar beijos em público, ler certos livros, ver alguns filmes, ouvir certos discos; usar isqueiro ou andar de bicicleta, sem prévia licença, assim como participar em “ajuntamentos de mais de três pessoas”.

2 – A cada um o seu lugar – a política feminina do Estado Novo” de Irene Flunser Pimentel

Este é um livro dirigido a um público muito diferente, uma obra de referência sobre o tema, um brilhante e premiado estudo académico, que nos elucida sobre o lugar que era alocado ás mulheres, na doutrina e nas leis da Ditadura, e que escalpeliza as estratégias que serviram os fins, acantonando o sexo feminino na esfera da domesticidade e bloqueando os canais de ascensão social e profissional, (segundo o sexo e a classe social), a começar pelo ensino e a acabar no afunilamento das oportunidades de trabalho e na discriminação salarial.

O princípio da igualdade, consagrado na Constituição de 1933, exceciona, quanto às mulheres, as desigualdades justificadas pela sua “natureza” e pelo “interesse da família”.

A “natureza” justificava a exclusão das mulheres no acesso às profissões mais prestigiadas, diplomacia, magistratura judicial, e quaisquer cargos de direção, assim como as assimetrias salariais, no professorado deliberadamente usadas para combater a crescente feminização do setor, que tanto afligia os Ministros da Educação, (alguns chegaram a impor “quotas” na entrada da profissão, a favor do sexo masculino!).

Para pôr a mulher “no seu lugar”, o regime combateu o ensino misto, ensaiou a diferenciação dos currículos escolares, a desvalorização da escola feminina e a redução da escolaridade obrigatória. Em vão… As taxas de feminização do professorado iam em crescendo (no primário de 68%, em 1930, para 87%, em 1960, no liceal de 33% para a 56%, no mesmo período

Ainda por cima, a taxa de feminização no acesso ao ensino seguia trajetória semelhante: no primário de 42%, em 1930, para 48,5 em 1960; no liceal (3º ciclo), de 33,2% para 50,1% – sendo superior a percentagem de aprovações: 53,2%, neste último ano.

Quer isto dizer que as raparigas foram vencendo preconceitos, armadilhas e barreiras colocadas no caminho da sua formação académica e profissional, e, enquanto se mantivessem solteiras, tinham, ao menos teoricamente, o direito de dispor de si e decidir o seu destino. Com algumas limitações, como se viu, por exemplo, arriscando ser presas pela polícia se saíssem à noite sozinhas…

Muito, mas mesmo muito pior era a situação das casadas, para quem o casamento era sinónimo de servidão. No altar, entregavam a sua liberdade, decaíam, nos termos da lei, para um estatuto de eterna menoridade, semelhante à dos seus próprios filhos, sobre os quais, como é óbvio, não podiam exercer o poder parental. Deviam obediência aos maridos, eram obrigadas a viver no domicílio conjugal por eles escolhido, e, se ousassem abandoná-lo, viam-se sujeitas a “depósito judicial de mulher casada”. Isto é, a detenção pelas autoridades policiais, seguida de “prisão domiciliária”. Careciam de autorização marital para tirar passaporte. Perdiam a capacidade de administrar os bens comuns e até os seus bens próprios. Tudo eram prerrogativas dos maridos, que podiam, ainda, proibi-las de exercer uma profissão, de publicarem um texto, violar a sua correspondência, e, em caso de adultério, assassina-las, sem consequência de maior (a pena era leve, um curto degredo de meses, a cumprir nas proximidades).

Parece mentira, mas não é. Estatuto jurídico semelhante ainda hoje persiste, noutras geografias como no Irão, na Arábia Saudita, no Afeganistão talibã… Com uma pequena, mas relevante diferença: o desfasamento das leis com a realidade social portuguesa. Muitas esposas, não sendo juristas e tendo cônjuges amáveis e sensatos, nunca se terão sequer apercebido da sua “capitis diminutio”.

“O princípio da igualdade,
consagrado na Constituição
de 1933, exceciona, quanto às
mulheres, as desigualdades
justificadas pela sua
“natureza” e pelo “interesse da
família”.

3 – “Ela é apenas mulher” de Maria Archer

Contudo, a verdade é que, durante a ditadura, em todos os domínios e no conjunto, as portuguesas foram fortemente condicionadas nas suas escolhas de vida e ficaram aquém dos seus sonhos e reais possibilidades. Para as (e os) jovens de hoje é difícil imaginar as vivências do quotidiano, nos anos da ditadura, sobretudo nas primeiras décadas, mas facilmente encontram esse mundo nas páginas do grande mais famoso romance de Maria Archer, que acima referi. É um dos seus raros livros não esgotados, na reedição da Parceria A. M. Pereira, com prefácio de Maria Teresa Horta. Faço minhas as suas palavras quando diz que que Archer traçou na sua obra literária, “o único retrato autêntico de corpo inteiro” (da mulher portuguesa nessa época).

Ninguém melhor do que Maria Archer soube recriar, de uma forma eficaz, crua e rigorosa, a atmosfera social e política que moldava, então, o círculo fechado das mulheres. Ninguém soube melhor escrutinar e denunciar a violência velada das leis arcaicas e dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e sujeição… Ninguém melhor do que ela soube desconstruir a imagem da “fada do lar”, com os seus dotes de observadora, de “quase etnóloga”, e com a força subversiva da escrita posta ao serviço de uma causa, que era a de infirmar o mito salazarista da inferioridade intelectual da Mulher…

Aqui fica o convite à descoberta da tão injustamente esquecida Maria Archer, e da sua arte de recriar o reino distópico do “Estado Novo”, derrubado em 1974. É uma forma especial de celebrarmos o cinquentenário da Revolução e, por feliz coincidência, também, o 125º aniversário desta extraordinária mulher e romancista, que escreveu história do feminismo com a sua própria vida.

Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado das Comunidades e Ex-vereadora da C.M. Espinho