Aproxima-se vertiginosamente a balança. E nem sequer falo daquela que transforma em arrependimento todos os pecados natalícios que, já já, nos farão jurar horas de ginásio com dedicada sujeição ao cycling, ao running, ao cross training, ao spinning ou mesmo ao kickboxing – vale qualquer coisa que acabe em “ing” e nos dê aquela sensação masoquista de quem, quase já sem respirar, manda poros fora quilos de rabanadas e/ou (quase sempre “e”) bolo-rei.
Por mais que achemos que não, a outra balança é ainda mais transversal do que essa e nem os raros que controlaram a gula nos jantares de família, amigos, conhecidos e colegas de trabalho lhe escapam: a ditadura do calendário vai lançar para um dos pratos o que se ganhou e para o outro o que se perdeu em 2022.
O saldo decide o carimbo – “ano bom”, “ano mau”. Preto ou branco. Mesmo que haja, com toda a certeza, quem adicione cores à equação (todos tivemos aqueles colegas com o estojo recheado de dezenas de canetas com tons diferentes). “Ano maravilhoso”, “ano assim-assim”, “ano terrível”… no fundo, como as tais canetas, leva tudo ao mesmo – bom ou mau, preto ou branco.
Os grandes acontecimentos, mais ainda os trágicos, carregam a balança com um peso difícil de contrariar. Ao fazer o filme dos últimos meses, não há como evitar pensar nos que foram e não voltam. Fazem falta e essa falta sente-se particularmente por estes dias. Quantas pequenas vitórias do dia-a-dia precisamos para equilibrar perdas assim?
Cabe-nos o papel de sarar as feridas e, sobre elas, erguer monumentos de memórias, dos sorrisos, das lições, das heranças. Lidar com a perda é doloroso, mas não haverá melhor do que voltar a ver quem nos diz tanto no lado certo da balança. Por nós e por eles.
Só fazemos jus ao luto quando percebemos que não temos de vestir a alma de preto para sempre; quando entendemos que é a nossa harmonia que acaba por equilibrar os pratos; e quando perdemos a vergonha de procurar quem possa ajudar a destapar o caminho. Esta foi uma das minhas conquistas este ano. Ouvi os sinais, abafei o preconceito e dediquei à mente o tempo que ela reclama.
Cabe-nos o papel de sarar as feridas e, sobre elas, erguer monumentos de memórias, dos sorrisos, das lições, das heranças.
Lidar com a perda é doloroso, mas não haverá melhor do que voltar a ver quem nos diz tanto no lado certo da balança.
Por nós e por eles.
Duas notícias recentes fazem-me reflectir que nem só as fatalidades provocam danos que muito facilmente podem desequilibrar-nos. E ambas estão relacionadas. Citando de cor: 1) há milhões de norte-americanos a regressar a casa dos pais. 2) está a voltar ao quotidiano dos portugueses a tendência das marmitas.
Não vejo, claro está, problema nenhum em quem queira estar em (ou voltar a) casa dos pais. Nem em quem prefira o almoço de casa à esplanada da moda. O problema não está em quem quer; está em quem não tem alternativa, em quem está asfixiado, em quem perde capacidade financeira todos os dias. Em resumo: o problema é estarmos a perder a independência.
Casa própria mais tarde, casamento mais tarde, filhos mais tarde, estudar até mais tarde. Caminhámos para aqui, tudo bem. Até porque também se vive até mais tarde. Mas caminhar a um ritmo mais lento é uma coisa; sermos obrigados a caminhar para trás é outra. E não sei se estamos preparados para lidar com ela.
Se há milhões a voltar para casa dos pais, e acredito que aguentem até ao limite antes de o fazer, outros milhões haverá que já não têm pais para onde voltar ou cujos pais não têm condições para recebê-los. Além disso, que problemas causará este regresso a onde já não seria suposto regressar-se, pelo menos sem a liberdade de se escolher assim? E que problemas causará perder, em pouco tempo, a opção de ir aqui e ali a um restaurante, para passar a almoçar no mesmo sítio em que se trabalha o dia todo? E limitar isto? E perder aquilo?
Também aqui se faz luto: pela autonomia, pela autoestima, pela realização ou, em última análise, por um ideal de vida imaginado que se esvai em aumentos do petróleo, rendas inacreditáveis, taxas de juro galopantes (apesar de anunciadas), guerras estéreis, incompetências políticas e afins. Este luto também faz pender a balança e exige-nos mais do que os “ing” do ginásio para nos mantermos mentalmente sãos.
Não, 2022, não quero parecer o pessimista que não sou ou o ingrato que faço por não ser. O prato do que ganhei está recheado de pequenas e grandes coisas. E de uma que o outro prato não consegue ter: sonhos. Uns mais utópicos, outros para perseguir todos os dias, outros já a realizar-se. Quem diria que este ano, finalmente, íamos poder voltar a sentar quase 40 Fidalgos à mesa de Natal?
Ao entrar naquela porta, ao cruzar o olhar com os primos e tios, ao receber os que chegaram há pouco, os que vêm agora por afinidade, ao vislumbrar na cabeceira da mesa a Avó Rosalina, exemplo maior da bondade e da partilha – sim, é possível dar a volta e sonhar e andar para a frente mesmo depois de se andar para trás. E encher a balança de cores, porque, afinal, é nas nossas mãos (e na nossa mente, aprendi tarde mas a tempo) que está evitar viver a preto e branco.
Feliz Natal.
Ricardo Fidalgo
Músico