Alguém disse um dia: há mulheres que conheceram o céu, outras o inferno; umas foram enaltecidas, santificadas, outras escravizadas, demonizadas; mas todas tocaram as profundezas do próprio ser, chegaram ao limite da sua condição e do seu tempo e, por isso, eternizaram-se na história. Há sobre elas análises dos arquétipos, dos mitos e das lendas reconstruídas em torno da mulher. Todos elas com algo de verdade, mas também de imaginário a atravessar anos de história, do passado até à mais recente conquista da civilização. A propósito deste termo “civilização”, lembro a resposta dada pela famosa antropóloga, Margaret Mead, à pergunta de um aluno: o que considera o primeiro sinal de civilização numa cultura? A aguardar estava uma resposta como as panelas de barro ou pedras de amolar, mas Mead referiu “(…)o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga foi a evidência de alguém com um fêmur partido e cicatrizado. Isto porque, no reino animal, o que partir a perna, não pode correr, ir até ao rio beber, caçar, e por isso, morre”. E acrescentou: “um fémur partido que cicatrizou é a evidência de que alguém teve tempo para ficar com quem caiu, tratou da ferida, levou a pessoa à segurança e cuidou dela até que se recuperasse. Ajudar alguém perante uma dificuldade é onde a civilização começa”.
Civilização é ajuda comunitária. Esse cuidar que as mulheres tão bem sabem fazer – cuidar dos outros, cuidar da própria civilização, assegurando a defesa do património e dos valores. Há outro cuidar que as mulheres sempre souberam tão bem fazer: guardar as sementes, preservá-las para providenciar a continuidade dos alimentos, importantes para assegurar a sobrevivência da humanidade. Elas foram no passado e ainda no presente, em determinadas tribos, as guardiãs das sementes! Daí a atenção de especialistas em apontar a ideia de que homens e mulheres desenvolveram diferentes habilidades de acordo com os papéis vividos na pré-história. Sim, em tempos remotos era usual os homens partirem para a caça. Os seus olhos ficaram preparados para verem melhor as sombras e captarem, com precisão, as presas. As mulheres ficavam em casa e com a responsabilidade do cultivo da terra. Assim, os seus olhos desenvolveram intensamente as diferentes cores, isto porque eram elas que escolhiam atentamente as sementes e vagens, diferenciadas pelas cores para não confundirem as boas das venenosas. Talvez por essa razão haja tão poucas mulheres daltónicas. Ainda hoje, as mulheres de muitas tribos continuam a ser as guardiãs das sementes.
Curiosamente, conheço uma amiga que guarda orgulhosamente sementes das suas avós para replicar legumes de grande qualidade. A sua generosidade leva-a a partilhar essas mesmas sementes.
Há em todo o mundo, cerca de 1.500 bancos de sementes e Portugal entra nessa lista. Esses bancos de sementes guardam todas as espécies de sementes para as preservar dos fenómenos climáticos que podem levar à sua extinção. O maior de todos, inaugurado em 2008, conhecido como “cofre-forte fim do mundo” é o Svalbard Global Seed Vault, localizado na remota ilha norueguesa de Spitsbergen, no arquipélago de Svalbard, cerca de 1.300 quilómetros ao norte do Círculo Ártico. É efetivamente o maior germoplasma do mundo, reunindo mais de um milhão de amostras de sementes de diversas proveniências.
Caso para dizer: tal como a misteriosa Arca de Noé, história fascinante do Antigo Testamento, jamais encontrada, mas segundo reza a lenda, capaz de salvar a civilização de um dilúvio, estes bancos de sementes, antecipando catástrofes no futuro, terão a mesma missão.
Missão eminente, face às atitudes de alguns cidadãos e estratégias dos decisores que parecem não acreditar que o caos pode acontecer e colocar em causa a sustentabilidade do planeta. Em risco estará a nossa civilização. Depois, os vindouros, concluirão: porque acabou a civilização? Pela falta de sensibilidade dos humanos para com os outros e pelo ambiente que não souberam preservar.
Arcelina Santiago
Professora